🚀 Olá, astronautas! 🚀
Meus pais contam que meu primeiro amor foi um amiguinho meu da creche. Minha mãe diz que, uma vez, nos encontramos na entrada da creche e meu coração disparou só de vê-lo. Ela colocou a mão no meu peito e sentia as batidas do meu coração, BUM-BUM-BUM. Nesse dia, ela pôs a gente pra entrar de mãos dadas e, de acordo com o que contam, quase morri por dentro.
Não lembro disso, mas lembro de ter algo como ciúmes de uma outra amiga quando brincávamos. Ela sempre era a Batgirl quando esse menino era o Batman, e isso me deixava desconfortável. Havia uma competição velada entre nós: eu queria ser a Batgirl! Eu queria ser também a dupla dele, mas, no fim das contas, era sempre ela que ganhava o papel. Eu era a Mulher Maravilha ou qualquer outra super-heroína. Não era ruim, mas não era o que eu queria.
Nas brincadeiras de roda, sempre torcia pra ser escolhida como a linda rosa juvenil. Lembro da vez que fui escolhida e entrei na roda pra viver a história, minha cantiga preferida. Em meu entorno cantavam: a linda rosa juvenil, juvenil, juvenil, vivia alegre a cantar, a can-tar. Até que um dia uma bruxa má, muito má, muito má- minha amiga, minha rival, a menina que era sempre a Batgirl foi escolhida e entrou na roda e me amaldiçoou. Deitei no chão do pátio até que o menino que eu gostava foi o príncipe que veio me salvar. Ele se abaixou e já não sei mais se me deu um beijo na bochecha ou inventei isso, mas ele me deu a mão e eu levantei e a música acabou. Lembro da minha felicidade naquele momento, de me sentir igual à cantiga de roda que cantavam, a minha preferida.
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Depois que mudei pra São Paulo, não perdi totalmente o contato com meus amigos, mas nos afastamos muito. Nas férias de julho, ficava na casa da minha melhor amiga no Rio e a gente se encontrava com todos os amigos da turma da creche– é um grupo que magicamente é amigo até hoje em dia –, e isso incluía tanto o menino que gostei quanto a menina de quem senti ciúmes. Gostava deles como amigos, mas nunca mais pensei ou senti nada quanto a ninguém. Eram meus amigos de infância, meus amigos de férias. Eram pessoas de quem me afastei por circunstâncias da vida e que não achava de que voltaria a me aproximar muito mais, por mais que mantivesse o carinho por eles e vice-versa. Era isso e nada mais.
Apesar disso, no fundo da minha mente sempre tinha essa pergunta que me ameaçava nas noites escuras: e se eu tivesse ficado? Será que eu sentiria por eles o mesmo que sentia agora? Será que seríamos amigos? Que tipo de amigos? Será que eu lembraria desse primeiro amor? Será que seria apaixonada por esse menino? Será que sentiria ciúmes dessa menina?
Em julho ou em janeiro, não fazia diferença. Eram quinze dias e nada mais.
Sempre tinha um começo e sempre tinha um final. E, no cinza de São Paulo, era fácil esquecer. Era fácil duvidar de que as memórias que tenho são minhas de verdade ou se foram algo que inventei de tanto que me contaram. Porque eu podia e ainda posso lembrar das cantigas de roda e do muro do pátio, mas não lembro do meu coração disparando.
São memórias tão fracas, tão fortes, há muito tempo já deixei de querer entender. Mas decidi comigo mesma: lembrando ou não, esse menino foi meu primeiro amor.
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Em São Paulo, o primeiro menino por quem tive algum interesse foi meu vizinho de porta. Ele era um ano mais velho que eu e a gente deixava as portas de entrada dos apartamentos abertos pra ter mais espaço de brincar. Quando as primas dele visitavam era melhor ainda, a gente não parava quieto um segundo.
A gente não costumava conversar muito na escola, mas isso não era uma questão pra mim. Gostava de guardar essa relação num outro lugar, longe do olhar atento das professoras, meninas malvadas e dos meninos que riam alto demais. Na escola, eu tentava passar mais ou menos desapercebida. Não é que eu queria ser invisível, mas também não queria me destacar. Não gostava dessa atenção toda, preferia ficar na minha. E, se eu falasse com um menino mais velho, eu com certeza ganharia mais atenção do que queria. Se ele falasse com uma menina mais nova, com certeza seria sacaneado. Então, eu ficava na minha. Ele também.
De tarde, no play do prédio, a gente brincava de jogar bola com as outras crianças que moravam ali. Não eram muitas, mas dava uma boa bagunça. E, às vezes, eu olhava pro vizinho e pensava: hm, até que ele é bonitinho.
Um dia, as primas dele vieram pra um almoço e, à tarde, eles tocaram em casa pra gente brincar de espionagem. Dividimos as duplas, as nações inimigas: ele e a prima mais nova, eu e a prima mais velha. Traçamos os objetivos, as regras, montamos nossas estratégias. Juntamos todos os brinquedos e objetos que fariam parte da nossa brincadeira e distribuímos. Abrimos as portas das duas casas: era o começo.
Eu me empenhei como em toda brincadeira que gostava. Entrei dentro daquele universo e confiei e me arrisquei. Passamos horas brincando. Até que, de repente, minha parceira apareceu do outro lado: ela tinha virado a casaca.
Os três estavam no apartamento dele, eu na beirada da porta do meu. Eles estavam de pé, triunfantes, o jogo acabou e eu tinha sido vencida. Você achou mesmo que eu ia ser leal a você?, minha até então parceira perguntou num tom de atuação tem bem feita que foi real. Não soube o que responder. Eles fecharam a porta do apartamento e foi isso. Eu fiquei lá, sozinha. Fechei a porta depois de alguns segundos, esperando se eles voltariam, mas não voltaram. Recolhi a parte dos brinquedos que não era minha e deixei no corredor. Foi isso.
De tudo que aconteceu depois, essa ainda foi a maior traição que levei. A primeira e a que mais me doeu. O vizinho voltou depois pra devolver os brinquedos que tinham ficado com ele, imagino que ainda tenhamos jogado bola algumas vezes. Mas eu não conseguia ver mais nada de bom nele. Só via o olhar que ele me deu naquele dia, como ele abaixou a cabeça quando a porta foi fechada. Perdi o interesse rápido. Eu já achava que ele era meio filhinho da mamãe de qualquer jeito.
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Na vida das meninas de 7 a 15 anos, é importante estar apaixonada. Amar, ou, bom, gostar-gostar de um menino nos dá um status importante e que precisamos manter. Algumas meninas amam celebridades, tudo bem. Elas são ambiciosas, sonham alto. Têm um quê pretensioso, como se os meninos de carne e osso não estivessem no nível delas, mas isso também demonstra bom gosto, nada desses moleques esquisitos que temos que conviver, elas gostam de homens.
Outras meninas gostam-gostam de algum menino gatinho da turma, às vezes tem uma corajosa gosta de um menino mais velho. Essas meninas, que gostam-gostam de gente que existe na vida real, são as mais populares porque elas têm uma história pra contar, algo que pode acontecer de verdade. As outras garotas podem criar estratégias pra ajudá-la, mas é ela que detém o poder.
O fora do menino não é um problema nas nossas vidas: a rejeição gera uma profundidade. Agora, fazemos parte das poucas que sabem o que é ter um coração partido, e isso nos confere uma sabedoria que as outras meninas, infantis e pouco vividas, não podem alcançar. A não ser que o mesmo aconteça com elas.
Ninguém chega e diz que são essas as regras, mas toda garota sabe. Toda garota é perguntada: E de quem você gosta?, e depois dos 11 anos não vale mais dizer eca garotos, porque isso é assumido como uma tremenda de uma mentira ou tremenda de uma infantilidade. Eis aí duas coisas terríveis pra uma garota ser.
Então, querendo ou não, chega um ponto que a gente tem que escolher alguém, um garoto, é claro, não me vai sair por aí dizendo que gosta de uma outra menina. É claro que lésbicas existem e merecem ter o direito de amar, mas você não é uma porque você é legal, e todas as lésbicas são chatas e odeiam homens. Bissexualidade nunca, nunca é mencionada. E, por isso, é importante escolher um menino. Pode ser qualquer um, honestamente, mas alguns vão te fazer ganhar mais respeito que outros. Isso também ninguém te conta, mas não é difícil de aprender.
Da primeira a terceira série, consegui passar imune às regras sociais porque seguia outras que me conferiam status o suficiente. Eu não gostava de nenhum menino, nem achava nenhum famoso bonito. Até tinha um ou outro amigo menino, mas em geral achava os meninos do meu colégio bobos. E meio feios.
Pra ser honesta, eu não gostava muito de ninguém da minha escola nessa época. Achava todo mundo chato e meio malvado; só tinha duas ou três amigas que gostava de verdade, que, pra mim, podiam ser minhas amigas pro resto da vida. De todo o resto, eu era amiga por sobrevivência. Isso não era um problema pra mim, nunca foi. Sempre tive muita consciência de que a gente precisa fazer amigos nos lugares onde frequentamos e genuinamente me conectei com as pessoas, mas isso não quer dizer que não tinha a consciência de que eram relações passageiras. Aos 9 anos, entendia que precisava dizer que amava as meninas e dar um elogio para cada letra de seus nomes pra não ser excluída do grupo. Era uma escola pequena, afinal de contas. Se eu não andasse com elas, teria que andar com os meninos que faziam competição de arroto.
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Gostando ou não, acho que me virava bem. Sentava com as meninas e abríamos nossas lancheiras e dividíamos o lanche. A etiqueta era oferecer o que você tinha para todas – que sempre aceitavam. Se você não oferecia, não podia pegar nada da outra. Mas também não podia comer o lanche todo às custas das outras, a maior parte tinha que vir de você. Isso era difícil quando eram 10 meninas e minha mãe empacotava cinco biscoitos. Meu sonho era que meus pais mandassem um pacote inteiro de biscoito passatempo, a menina mais popular da escola fazia assim. Era impressionante, todas nós queríamos ser a melhor amiga dela, eu inclusa.
Foi essa menina que, um dia, aprendeu a ler mão. Ela olhava a linha da vida, do coração e do destino, e podia nos contar quem de nós ia morrer de acidente de carro. Eu não precisava me preocupar com nada disso, ela disse, porque tinha um N na minha mão, e isso era sinal de coisa boa. Quem tinha que se preocupar era quem tinha o M, que era a Marca da Morte. (Nessa hora, todo mundo fazia o sinal da cruz.)
Foi ela também que nos ensinou a descobrir de um jeito simples o nosso futuro. Você tinha que dizer com que idade queria casar. Com isso, ela te dizia com quem você ia casar, qual modelo de carro ia ter, quantos filhos teria (de 1 a 3) e se moraria numa casa, apartamento ou mansão. Todas as meninas falaram que queriam casar com uns 21 anos, o que eu silenciosamente achei insano. Quando foi a minha vez, tentei pensar em qual idade minha mãe me teve, 28. Pareceu velha demais em comparação, então falei 24. Todas as meninas ficaram horrorizadas, mas fizeram o cálculo mesmo assim. Lembrei disso aos 24 anos e dei muita risada. Fiquei me perguntando se alguma delas casou nova.
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Existiam muitas regras que determinavam seu status entre as meninas – algumas passageiras, outra mais duradouras. Algumas eram normais: ter o tênis da moda, o estojo da Kipling, as canetas em gel, mais figurinhas pra completar o álbum, os papeis de carta mais bonitos. Outras eram mais aleatórias, como quem conseguia mais adesivos diferentes na festa de aniversário de algum colega.
Cada pote tinha um adesivo e, pra conseguir o maior número, tínhamos que falar com alguns dos meninos que eu não gostava. Esses eram os meninos populares. Os que faziam competição de arroto, bagunçavam a aula inteira e o líder deles era um moleque bem mais algo que os outros, que já usava aparelho, e que uma vez perguntou pra professora como é que as mulheres iam se proteger se não existissem homens (a professora levantou a manga da camiseta e mostrou o maior muque que já vi na minha vida: com isso, ela disse. E a turma inteira começou a gritar. Das ironias da vida, soube que esse menino se descobriu gay).
Eu evitava ao máximo esse grupo, mas ali estava numa missão. Eu e a menina popular estávamos com o mesmo número de adesivos. Fui então com ela e umas outras meninas pedir os adesivos pros garotos. Faltava um só, o do Gabriel, lembro o nome dele mesmo que não muito bem seu rosto. Ele olhou pra gente e eu sabia que todas nós estávamos ansiosas demais pro aquilo, por saber quem ia ganhar. Eu sabia que não tinha chances, ninguém ligava muito pra mim e eu nunca que ia pedir aquele adesivo por conta própria, não ia implorar, não ia mostrar que aquele status realmente importava, por mais que eu sentisse no fundo da minha alma a diferença que aquilo fazia. Eu já tinha sido a vítima do bullying ali, afinal de contas. Eu sabia o quanto não precisava de muito pra voltar àquele lugar, era só um tropeço, um penteado errado, um centímetro da calcinha aparecendo, uma resposta errada na frente da turma. Não tinha coragem de lutar com unhas e dentes como as outras, mas tinha meu instinto de sobrevivência.
As meninas olhava pro Gabriel com olhos de caça, esperando ele se decidir quem seria a vencedora. Ele não sabia o que tinha nas mãos. Ele sabia que era algo que todas queriam, mas não entendia a importância disso no mundo das meninas.
– Eu vou dar o adesivo. – ele disse, e todas as minhas sorriram. Então ele sorriu mais que todas e continuou: – Mas eu só vou dar se ela for carioca.
Ele olhou pra mim com um sorrisinho que só fui entender em profundidade muitos anos depois. Era uma mistura de presunção e esperança, eu não entendi. Só fiquei surpresa enquanto todas as outras meninas protestavam. Ele não tirava os olhos de mim. Dei dois passos pra frente, olho no olho, as meninas ainda indignadas, e peguei o adesivo da mão dele. Virei de costas, colei no meu copo e fui embora. Algo não caiu bem pra mim, mas fiz questão de ignorar. Eu tinha vencido aquela batalha.
Se meu amigo de creche foi meu primeiro amor, esse menino foi a primeira vítima da minha incapacidade de compreender quando alguém está afim de mim.
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Essa política sentimental nunca foi muito a minha praia, mas, na quarta série, ficou incontornável não gostar de um menino. Então, escolhi que gostava do nerdzinho da turma A. Ele não era tão feio quanto os outros, era gentil e era amigável comigo. Me pareceu uma escolha razoável.
Um dia, minhas amigas me convenceram de dizer pra ele como eu me sentia. Então eu disse. Ele respondeu que agradecia, mas que precisava focar nos estudos (lembrando: não tínhamos nem dez anos). Eu disse que beleza. Teve uma semana meio esquisita e depois continuamos com a mesmíssima relação, da qual só me lembro da carinha sorridente dele.
Uns meses depois, escolhi um amigo meu que não era da escola pra me manter com o status que precisava. Numa noite, olhando a janela do quarto, ele me confessou que gostava de uma amiga da escola dele. Era tudo que eu precisava.
Quando mudei pra escola dele, no ano seguinte, achei curiosa a escolha dele. Ele foi meu melhor amigo até mudar de cidade. Essa menina foi minha amiga até a melhor amiga dela brigar comigo.
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Mais ou menos por essa mesma época, no tempo do meu primeiro colégio em São Paulo (também o tempo em que menos lembro do que vivi), estava com a minha mãe saindo de algum evento da escola quando esbarramos com a mãe de um menino da minha turma, um desses que nunca falava comigo. Ela perguntou meu nome, minha mãe respondeu. Essa mãe, então, disse muito animada: Ah, então você é a famosa Clara?! Meu filho só fala de você!.
Aquilo me deu um pânico absurdo. O menino nunca tinha falado comigo na vida. A gente não se conhecia. O que esse garoto tava fazendo por aí me notando? O que esse garoto tava fazendo por aí falando de mim pros outros?! Gostando de mim?!! Evitei o menino igual diabo da cruz.
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Acho que a primeira paixonite que tive e lembro foi na quinta-série, no colégio novo. Fiquei muito amiga do menino que sentava atrás de mim e acho que me apaixonei por ele. Digo “acho” porque, hoje em dia, não lembro direito e faz tanto tempo que não me apaixono por alguém que às vezes duvido um pouco se isso já aconteceu assim nesses termos românticos e também sexuais.
Não senti atração por ele. Ele me batia com uma régua a aula inteira, quando eu não podia revidar porque levaria bronca. Quando tocava o sinal do recreio, ele saía correndo porque sabia que eu ia atrás dele pra bater de volta e eu corria, corria, corria até PLAU, eu dar um tapão nas costas dele. À noite, ele me ligava e ficávamos horas no telefone, até que era hora da novela e ele desligava porque nunca perdia um capítulo.
Gostar desse menino não era má escolha. Ele era bonitinho o suficiente mas não estava no hall dos mais populares. Isso significava que havia uma certa distinção em gostar dele, eu não era igual às outras meninas que só gostavam dos mesmos caras de sempre.
Essa foi a época em que começaram as matinês e, por eu ser do time de vôlei, que era o time mais popular da escola (e também o único que conseguia chegar em uma final de campeonato, apesar de sermos ruins), sempre era convidada. Eu ia. As meninas e meninos estavam começando a beijar na boca, mas eu gostava mesmo de dançar. Acho que, por ainda ter um lado mais criança, a dança tinha um quê de brincadeira e eu me divertia. Minhas amigas tinham vergonha de dançar, vergonha dos seus corpos e de terem que ser vistas pelos meninos naquele momento. Hoje em dia, eu entendo. Mas, na época, não pensava nisso. Só gostava muito, muito de dançar e não tinha problema nenhum em entrar no meio das rodinhas, independente de quem estava.
Nenhum menino queria me beijar, mas tudo bem, eu não também não queria beijar nenhum deles.
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Fiquei amiga de uma menina que virou praticamente minha irmã durante a nossa pré-adolescência. Ela ia pra minha casa na sexta depois da escola e só voltava pra casa dela segunda-feira depois da aula. Frequentávamos alguns grupos diferentes – ela tinha bem mais amigos por já estudar no colégio antes de mim –, mas éramos muito, muito próximas. Eu amava ela com todo o meu coração. Numa época, minha família talvez fosse mudar de país e nós duas fantasiávamos a mudança como se ela fosse com a gente.
A gente se divertia muito juntas. Daquelas amizades que só um olhar já faz a gente chorar de tanto rir. Quando penso nela, penso na gente rindo. Penso em nós duas com nossos pijamas combinando sentadas na micro varanda do quarto apoiadas numa almofada gigante que ela nomeou de Zac-Almofada comendo brigadeiro e falando mal das coisas que víamos na revista Capricho. A gente adorava comprar Capricho pra falar mal das garotas que acreditavam nas coisas que estavam escritas lá. Nós não éramos como as outras, não acreditávamos naquelas baboseiras mesmo que lêssemos todas as matérias e fizéssemos todos os testes e, uma vez, confessamos uma a outra que tínhamos vontade de fotografar nossos looks pra sair no blog da revista. Nós éramos estilosas, sabíamos e queríamos o reconhecimento. Mas o medo de ser vista por alguém do colégio era ainda maior. A internet, nessa época, não era uma coisa maneira.
Numa madrugada em casa, essa amiga me confessou: eu gosto do […]. Era o mesmo menino que eu gostava, o menino que passava o dia me infernizando. Fiquei nervosa, mas disse que, então…, também tenho que te confessar uma coisa, eu também. Por um lado, foi um alívio, agora nós duas poderíamos falar dele. Por outro lado, nós duas sabíamos que estávamos competindo pela atenção dele.
Não fez diferença nenhuma, ele começou a namorar uma menina muito mais popular do que a gente alguns meses depois. Fiquei um pouco decepcionada com ele, mas talvez o mundo dos meninos não fosse como o mundo das meninas. Talvez, pra ele, a política sentimental fosse outra.
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É agora que começo a lembrar de tudo. É agora que as músicas começam a tocar alto nos fones de ouvido. Não é memória, é cinema. Até então, consigo lembrar de cenas, mas agora filmes inteiros se passam pela minha cabeça, eu lembro, eu lembro tanto que chegava a ter vergonha.
É agora que começo a querer falar diretamente com cada um – é você e você, foi você também. De todos os nomes que lembro, são esses que mais evito dizer em voz alta, por isso talvez essa vontade gigantesca de chamar assim, de aproximar tanto, colocar na minha frente de novo. Eu posso ver.
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Eu sempre posso ver. Repito e repito e repetirei até morrer: eu vejo, tá incrustado nos meus olhos.
Você – um, dois de vocês, pelo menos – lembra quando te contei que finalmente entendi o poema do Drummond? Eu disse sorrindo, gesticulando pra todos os lados: a pedra se torna um filtro pra vida. E você – um, dois de vocês, pelo menos – sorriu tão largo de volta como se fosse um espelho infinito. Eu me pergunto muito o quanto busco o Outro ou a mim mesma.
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Minha história de amor mais selvagem foi, obviamente, a que vivi na pré-adolescência. Eu me apaixonei pelo meu melhor amigo e tinha tantas coisas pelas quais podia sofrer por causa disso: estragar nossa amizade, o fato de ele ter uma namorada que amava muito, o fato dessa namorada ser minha amiga, de eu ter sido o cupido da história toda, de que continuar amiga dele seria ruim e deixar de falar com ele também, de que toda escola começou a falar da gente (e olha que nem éramos tão interessantes assim, éramos um grupo de nerds!). Ela acreditou nos boatos e ficou puta comigo. A gente brigou. Ela jogou um cadeado em mim. Eu comecei a dar em cima dele só de raiva. Ele brigou comigo. A gente gritou no pátio da escola que se odiava. Eu fui chorar no banheiro. Hoje acredito que ele chorou em casa. Decidi me vingar, fui dar em cima do melhor amigo dele. Ele se mordeu de ciúmes. Deu certo, mas mais ou menos.
E tiveram músicas e longos e-mails e subnicks do MSN e ninguém sabia usar pontuação direito. Foi uma bagunça.
Motivos eram o que não faltavam – e, não me levem a mal, eu sofri por tudo isso –, mas o que realmente mais me machucava era o fato de que eu estava apaixonada por um feio.
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Os meninos feios são os mais perigosos. Na vida de mocinha, aprendemos a estar alertas a todo instante, mas é fácil baixar a guarda com um feio. Porque você ri e não dá nada por isso. Até que esses risos começam a te aquecer o coração, mas agora você não pode contar pra ninguém, porque imagina a vergonha de virar pra sua melhor amiga e admitir: eu acho que gosto de um feio.
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Não só porque homens podem nos machucar, mulheres também podem. Os meninos adolescentes costumam ser cruéis sem saber, porque ninguém os ensinou a ser diferente disso. Mas as meninas adolescentes têm completa noção da sua crueldade. É uma escolha e todas nós sabemos, mesmo que nunca admitamos. É algo que nos ensinam também.
Na equação do nosso status, não se conta mais adesivos e quem sabe ler mão, mas isso não quer dizer que ainda não exista uma equação que todas calculamos. Algumas das coisas consideradas são: roupas, cabelo, maquiagem, gosto musical, frequência de leitura, aparência, voz, pessoas com quem anda, como cada uma fala sobre sexo (independente de quem transou ou não), notas na escola, tipo de rolê que cada uma dá, etc. Os julgamentos variam dependendo do grupo social, mas tudo isso (entre outras coisas) é considerado por todas. E a gente sabe quem é ou não competição.
Às vezes você sabe que uma menina não compete com você porque vocês estão em pontos muito diferentes da equação. As meninas patricinhas nerds do meu colégio e as meninas patricinhas populares não competiam comigo porque nossos pontos sociais não se cruzavam. Podíamos ser amigas ou indiferentes, mas nunca competiríamos porque os jogos que jogávamos não eram os mesmos.
As meninas que competem com você são as que jogam o mesmo jogo. Essas são perigosas porque elas sempre podem dar o bote e nunca podemos reclamar. Afinal, se você não as conhece, não tem direito a ter uma opinião. Mas se elas são suas amigas, bom... Elas são suas amigas, você devia apoia-las, não?
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É delicado. E perverso.
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Uma amiga que é sua amiga e não compete contigo vai rir da sua cara quando você admitir que gosta de um feio. Uma amiga que é, hm, mais ou menos sua amiga e que compete com você vai te incentivar e oferecer ajuda pra você conquistar o dito feio.
Você não quer que sua amiga-amiga saiba dos seus sentimentos porque isso é ter que encarar emoções que você não está pronta pra lidar. Mas sua amiga-inimiga também não pode saber de nada, ou então ela que vai deter o poder.
É por isso que a gente guarda esse segredo a sete chaves dentro do peito. Mesmo que, no fundo, todo mundo meio que saiba dos seus sentimentos de qualquer jeito, porque adolescentes não sabem fingir nada direito.
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Nunca contei do primeiro feio que gostei, apesar de todas as minhas amigas obviamente saberem. Uma vez, aquela amiga que foi quase minha irmã me testou e disse que achava que estava começando a gostar dele. Era mentira, eu sabia. Ela só queria poder, ela só queria se afirmar. Não admiti nada, só disse que achava roubada. Uma semana depois, ela disse pra eu esquecer o que ela tinha dito, tinha sido só uma semana esquisita, ela na verdade gostava de um outro menino – um que estava fora do meu alcance por não ser do meu círculo social, mas que era plausível o suficiente estar ao alcance dela (e estava).
Anos depois, entrei no círculo desse menino e, realmente, ele tinha rolos demais, não era pra mim. Mas, numa noite num bar que não pedia RG, nós dois fomos beber juntos do lado de fora e percebi que, se eu quisesse, eu também podia me afirmar ali. Eu não quis. Saber disso era mais do que o suficiente pra mim naquele momento.
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O que vim a descobrir é que eu nunca quis muita gente, mas ainda não sabia disso durante a escola, nem mesmo no começo da faculdade. Eu era muito assombrada pelos E Se nessa época.
Existiam dois tipos de garotos (porque, nessa época, eu só considerava garotos1). Tinha os meninos que eram meio interessantes, que me faziam considerar: será que vale a pena investir?. Eu observava de longe, chegava meio tateando pra ver no que dava. Esses eram os que mais me deixavam triste porque eles nunca me escolhiam. Eles me davam alguma atenção, tinham alguma conversa existencialista que me deixava curiosa e, no momento seguinte, levantavam e beijavam a menina mais magra, mais estilosa e mais sociável do que eu.
Essa menina (eram sempre meninas diferentes) era sempre uma amiga minha. E depois do beijo e, por vezes, da sumida ao banheiro, elas vinham chorar no meu ombro se perguntando por que eram assim, por que faziam isso, por que se destruíam tanto. Eu as abraçava enquanto engolia a minha tristeza: por que nunca era eu?
*
Antes de eu me dar conta de que estava apaixonada pelo meu melhor amigo, ele me escreveu via MSN que os amigos tinham combinado que ele ia perder o bv dele com uma amiga minha. Era uma dessas amigas não muito amigas, uma que eu não achava que era uma competição porque ela era mais feia e menos estilosa do que eu.
Percebi que gostava dele porque fiquei revoltada quando ele me contou. Mas ela é feia!, eu disse. Ela é sua amiga, ele respondeu. E desde quando ser amiga de alguém faz você não achar a pessoa feia? Ele ficou indignado comigo.
Se é só uma questão de perder o bv, eu faço., eu escrevi, Eu te beijo, não tem problema.
Clara, eu vou ficar com ela.
Você devia ficar comigo. Pelo menos, eu sou mais bonita.
*
Ele era o segundo tipo de garoto, o que eu não esperava me apaixonar e mesmo assim aconteceu. Ele e tantos outros são os que ainda tenho vontade de chamar de você mesmo agora, quando já não tenho nada a dizer pra eles.
De certa forma, eles eram os mais cruéis, porque todos eles me amaram e nunca admitiram. Passei anos achando que estava louca, que tudo tinha sido um delírio da minha cabeça, que tinha inventado tudo aquilo.
Eles não deixavam provas. Era um olhar, um sorriso, um relance. Era o peso da distância entre as nossas mãos e a precariedade das reticências que usavam. Eram as memórias que me assombravam dia e noite, que são tão vívidas que até hoje em dia consigo ver, que me atormentavam tanto que eu me sentia uma otária por lembrar tão bem.
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1. a cor da madeira do violão; as espinhas no rosto; a silhueta do nariz; as árvores em frente ao apartamento; as risadas nas tardes de sol; o toque dos seus dedos segurando o meu rosto; as discussões mais imbecis; o olhar de peixe morto que tirou o pouco de beleza que lhe restava.
Não precisei apagar muito dele porque tudo morreu junto com seu olhar. Mas o que ficou é escrito em pedra. E eu conto rindo pra todo mundo. É a história que menos escondo, a que mais conto em detalhes. Mas até hoje seu apelido me dá um pouco de vergonha de dizer em voz alta. Evito sempre que posso.
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2. o meu olho azul refletindo a cor da sua camiseta; a voz baixa; os fones de ouvido compartilhados; a vírgula gramaticalmente errada; um pendrive velho em um envelope com meu nome; os incontáveis silêncios; as letras em inglês porque falar em português era próximo demais ao coração. O tanto que evitei seu nome por anos quando falava com a minha mãe porque sabia que, na hora em que eu pronunciasse, ela iria perceber mais do que o que eu já sabia que ela percebia e muito gentilmente não mencionava pra mim.
Eu lembro: das suas mãos trêmulas fechando o zíper do meu vestido; das cores das letras que usávamos no MSN; do jeito que até hoje ele coloca a mão no queixo quando está pensando sobre algo; das gargalhadas; do banco da praça em que nos sentamos; dos meus pés descendo da calçada pra rua bem na hora que ele disse: eu não acho que a gente devia namorar. E quem disse que eu quero te namorar?!, perguntei indignada com a presunção toda; o alívio na sua voz dizendo: ah, sério?; a emoção na mesma voz só alguns meses antes enquanto ele estava no escuro se reconhecendo numa das muitas fotos que eu tinha penduradas no meu quarto.
Ele disse: se fosse naquela noite, a noite do seu aniversário.
Eu nunca contei pra ninguém, mas na manhã seguinte dessa noite eu o vi deitado dormindo na bicama debaixo da minha e decidi contar até dez. No oito, ouvi as vozes das minhas amigas acordando no quarto ao lado, já dando risada. Então, levantei e saí do quarto.
O que mais gosto de nós é quanto tudo isso é uma História. O quanto que, contando com as palavras certas, dá pra arruinar a cabeça de qualquer pessoa com o que vivemos. Mas eu separo as coisas: os fatos principais, os causos absurdos, as miudezas que transformo em palavras.
É história demais, coisa que conto em capítulos ou então vai ser um longo monólogo. Sou afeita a monólogos, não por isso, mas todo mundo tem seu limite. Essa é a história que poderia contar inteirinha e não esquecer de nenhum detalhe, a história que posso alongar o tempo que for, sempre terá mais detalhes. E eu lembro. Eu lembro de todos eles. Não conto pros outros, guardo pra minha escrita. Separo um pouco pra cada coisa porque tudo de uma vez é impossível. E ainda assim lembro dos quartos, de todos os sorrisos, das noites chorando. Lembro de como arquitetei tudo pra nos beijarmos, de que ele guardou a memória.
Finalmente tive coragem de admitir pra minha amiga: eu gosto-gosto desse feio. Nós duas andávamos pela praia e eu lembro de como nossos pés afundavam na areia amarela.
Uma semana ele partiu meu coração e o que mais me deixou puta foi que, agora, eu tinha que admitir pra outra pessoa que estava triste por causa de um cara.
E quando fizemos as pazes, e depois quando brigamos, e depois quando fizemos as pazes de novo, tudo isso tive que contar sabendo que estava sendo julgada. Ou, bom, talvez julgamento não seja a palavra, mas sabia que minhas amigas e meus pais tinham as suas opiniões e que eles criariam seus malabarismos pra não dizer tudo o que achavam. E é ridículo, eu sei, mas só entrei em paz com tudo isso quando minha mãe me disse que achava bonito como demos um jeito de sermos amigos.
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Eu não devia escrever isso tudo aqui. Meus pais vão ler. Meus amigos vão ler. Estranhos vão ler. Mas, por favor, me deem essa licença poética. Há muito tempo ando com uma vontade gigantesca de escrever algo visceral, algo que faça todo mundo se acabar de chorar. Não que seja esse texto, porque não é. Mas entendam que isso tudo é um trabalho de construção de texto, digamos, uma ficcionalização.
Na vida, tudo foi bem mais solto e esparso. Mas olha como é mais bonito e divertido contado desse jeito.
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3. o bar onde nos conhecemos; o peso do microfone nas minhas mãos enquanto cantávamos Tim Maia; as minhas roupas de poá; seu sotaque; sua postura; a sua cantora preferida; as luzes da Praça da Sé; o abraço de despedida; os inúmeros pontos de ônibus. As cartas; o envelope laranja, eu guardei; os paralelepípedos de Paris; o passo pra trás; o ponto de ônibus da faculdade lotado às 11h da noite; o barulho do último restaurante que fomos.
Talvez eu não devesse mentir: desse aqui, eu esqueço. Mas esqueço porque tudo ficou grudado em mim por tempo demais. Porque eu odiava lembrar. Foi com ele que decidi: está na hora de esquecer. Então, esqueci. Essas memórias estão numa caixa tão velha e empoeirada da minha cabeça que passa batido. Mas se necessário, posso lembrar e lembro de tudo.
Nunca é necessário.
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4. seus olhos brilhantes; uma estátua do Bernini; seu grifo a lápis em tantos livros; a sala da sua casa. Vamos nos deter por aqui, ok? Poderia passar a vida infeliz por não chegar aos tons exatos das cores que passaram por nós. Vou me deter por aqui. Sei ser muito mais piegas do que isso, mas ninguém mais precisa saber.
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A minha política de passar suficientemente desapercebida pela escola continuou até eu me formar. Minhas amigas não contariam a história assim, porque eu usava roupas escandalosas e passei por muitos grupos de amigos diferentes. Mas, honestamente, isso também fazia parte desse equilíbrio esquisito que buscava: ser eu, aprender a ser eu, mas também fazer isso sem muita gente prestando atenção. Mas alguma atenção eu queria. E, entre os nossos círculos indies wannabe skins, eu não via assim tantas vantagens de ser invisível. Perdão pelo trocadilho.
Mas é, tinha um meio termo. Eu não queria ser a garota que chorava no banheiro e todas as meninas iam atrás pra consolar (essa era a que mais detinha o poder), mas também não queria ser que esqueciam que estava no rolê. E por mais que eu sempre estivesse ali e fosse costumeiramente procurada pra confissões e conselhos, muitas vezes eu me sentia muito próxima de ser esquecida do que qualquer outra coisa. Entre todos os dramas adolescentes, os meus problemas não eram os mais interessantes. Só que não ter problemas interessantes significava não ser muito interessante. E mesmo que eu soubesse que era interessante, o meu apelo era muito mais intelectual. Comparado às minhas amigas, eu não vivia muitas coisas. E, se eu não vivia muitas coisas, minha vida começava a ser menos válida do que as delas.
Vamos deixar claro: não digo isso no sentido suicida de sentimento de validade de vida. Digo muito mais nesse sentido estranho da política dos status das meninas e que vai nos fazendo nos sentir cada vez menores, todas nós (vim a aprender). Não passar por situações que interessavam as outras significava perder a relevância ao falar, você começa a deixar de ser ouvida – e isso era uma coisa que eu não aceitava bem.
Eu me entendia um pouco como conselheira das rainhas. Não ia competir diretamente com nenhuma delas pelo trono e o rei, mas isso não significava que eu não tinha poder, porque eu tinha. Eu guardava muitos segredos, afinal de contas. E não era tão calculado assim, mas nós mocinhas sempre temos nossas estratégias.
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Sabe quando você olha pra alguém e a gravidade é tão forte que é difícil de se conter? Pois bem, eu não sei. Sempre analisei intelectualmente todas as pessoas, todas as situações, esse papo de fisicalidade e animalidade e naturalidade nunca fizeram sentido pra mim, eu não sentia nada disso. Tudo passava pela minha cabeça antes de qualquer outra coisa. E não era um esforço de racionalização, era só como as coisas eram.
Então, quando entrou o novo estagiário na sala e todas as meninas acharam ele o homem mais lindo do mundo, eu o observei com um olhar clínico e meu parecer final foi que, cara, ele nem é tão bonito assim.
Nenhuma das meninas concordava comigo. Elas continuavam falando de como ele era gato mesmo assim.
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Fiquei amiga do tal estagiário. Eu me formei e passei pra faculdade no prédio do lado do curso dele. Eu e minha amiga (uma competidora) fomos convidadas por ele pra uma cerveja celebratória, ele queria apresentar a vida universitária pra gente.
Foi a primeira vez que bebi cerveja e gostei. Quando ele saiu da mesa pra ir ao banheiro, minha amiga se inclinou pra mim exclamando animada e surpresa: Você tá bebendo cerveja!!!!, então, talvez, ela não fosse tão má assim. Quer dizer, ela poderia ter falado na frente dele e não falou. Mas ela também estava enrolada com histórias mais complexas que envolviam pessoas que detinham bastante poder no nosso péssimo grupo de amigos.
A amizade deles não foi pra frente, mas a minha com ele foi. Número 4 nas memórias mesmo que, teoricamente, eu o tenha conhecido antes do número 3 (essa mesma menina que nos apresentou e, de alguma forma, isso sempre me deu uma sensação esquisita, como se porque viesse dela, algo devia estar errado, algo nunca poderia dar certo, mesmo que não ache que certo-errado seja a chave ideal pra falar sobre sentimentos e relações).
É horrível dizer, mas a primeira coisa que realmente me passa na cabeça quando penso nesse garoto (agora um homem, mas é estranho escrever assim) é que ele foi meu troféu. Ninguém soube. Ninguém nunca soube porque eu nunca contei e me afastei e ele também foi um desses tipos que não deixam rastros. Mas não faz diferença porque eu sei. E depois que as batalhas são largadas e os exércitos voltam pra casa, a única coisa que importa é isso, o que ainda posso ver.
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Tudo foi platônico. E por isso duvidei por tantos anos de que foi real.
O que eu tinha pra contar? Um olhar, algumas palavras, a distância imensurável dos nossos corpos. Eu podia apontar no mapa todos os percursos, mas o que sobrava de nós ali? Uma caneca roubada, um guardanapo em que escrevi com caneta bic a data e a companhia. Quem disse que não é mentira?
Mas esse menino, garoto, homem. Essa estátua do Bernini. Ele foi o primeiro que confessou: tudo isso aconteceu. E depois dele, todos os outros.
O que eu posso contar?, eu perguntei olhando um deles nos olhos. Tudo.
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Não existe nada mais cruel do que não saber, nada mais enlouquecedor do que duvidar da sua própria cabeça. Repassei tantas vezes todos os acontecidos, tudo que podia me dar uma pista de que eu estava vivendo a realidade que talvez por isso que venha como um, dois, sei lá quantos filmes. Uma fita se sobrepõe à outra, a memória é analógica, mas ainda assim, olha, eu posso ver, será que posso te mostrar?
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Essa era pra ser uma newsletter sobre linguagem. Tenho pensado muito a respeito de língua e sentimentos, testado elaborar algumas ideias ao mesmo tempo em que me pergunto por que raios não consigo parar de ouvir Taylor Swift (já faz um ano!!). Por causa disso, vinha pensando muito sobre um texto da Anna Vitória sobre ser fã de Taylor Swift e, como se pudesse ouvir meus pensamentos, acabou que ela republicou esse texto agora há pouco na sua newsletter. Nesse texto, ela usa essa expressão: educação sentimental.
“É como se através deles [Taylor Swift e The National] o ouvinte experimentasse uma espécie de educação sentimental acerca do que existe de mais embaraçoso dentro de si [...]” ela escreve. E fiquei pensando nisso, nesse conceito. Taylor Swift, Lorde, Carly Rae Jepsen e outras mocinhas tão mocinhas como eu não foram minha educação sentimental. Elas não estavam presentes nesses momentos, não participaram desse momento estruturante, educacional. Mesmo que eu secretamente chorasse com a voz desafinada da Taylor no seu misto de canto-grito: he’s the reason for the teardrops on my guitar. (Os detentores do violão sempre foram os tais he, não eu. O violão nunca me emocionou como obviamente emocionava meus amigos e amores platônicos.)
Minha educação sentimental veio de um lugar completamente diferente dessas mocinhas. E quero falar disso com calma. Encarem, então, essa newsletter como a primeira, meu folklore. Minhas histórias verdadeiras ou falsas, o que tirei do meu baú ou cofre. Porque o que percebi é que essas mocinhas não me educaram, mas suas músicas ecoam minhas emoções, meu apego aos detalhes mais inúteis, aquilo que minha mente maximaliza e transforma no centro de tudo. O que me fez sentir otária por muitos, muitos anos.
Assim como elas, meu instinto é lembrar. É me apegar. Guardar. Meu instinto é escrever e gritar pra todo mundo ouvir. Eu lembro, eu lembro, eu lembro. Verso 1, ponte, refrão. Eu lembro de tudo, não é vergonhoso? Eu tive que me ensinar a esquecer. Um dia, cansei de me sentir otária e resolvi que esqueceria. E esqueci. Sou uma autodidata na arte do esquecimento. Acredite se quiser, eu não lembro de nada.
Até meu evermore,
Clara
Não que importe pra essa newsletter, mas sei que a curiosidade existe: eu sou assexual. Não estritamente ace, mas em algum lugar não identificável e fluido da área cinza. Isso significa que raramente sinto atração sexual por pessoas. Durante a época de todas essas histórias, eu não sabia que era ace e, porque vivemos em um mundo muito normativo, eu me considerava hétero. Hoje em dia, cheguei à conclusão de que, pessoalmente, não consigo e nem me interessa me identificar como hétero ou bi ou pan. Às vezes, penso em escrever sobre todo esse processo, mas daí tenho muita preguiça. O que posso dizer com toda a certeza é que a vida é fluida e eu também.
clara, eu sou apaixonada por tudo o que você escreve. obrigada!
ontem eu estava chorando por minha solidão e como ela é ainda mais agravada porque eu jurava que estaria casada e com filhos aos 25 anos e me veio a memória dessa brincadeira/previsão que a gente fazia na escola. eu lembrava que tinha a idade e o número de filhos, mas não lembrava as outras informações. surreal que você tenha mencionado exatamente essa brincadeira entre tantos outros oráculos casamenteiros da (pré)adolescência. enfim, acompanhei o texto todo me vendo em várias situações e entendendo melhor o ecossistema em que eu vivi por tanto tempo sob a sua perspectiva. várias coisas ditas nesse texto bateram forte em mim. gracias por compartilhar!