🚀 Olá, astronautas! 🚀
Ando meio cansada de falar de mudança, mas às vezes parece que é a única coisa que se tem pra falar. Ensaiei milhões de textos pra vocês, mas tudo me cansava, nada soava certo, não batia naquele nervo que vai do cérebro pro coração. Troquei áudios com amigas, refleti sobre o assunto olhando pras sombras que se formam no teto do meu novo quarto, escrevi no diário, deletei mais um arquivo do computador. Revi meus art journals do começo da faculdade, me peguei perdida entre fotos de 15 anos atrás. Então, voltei pro mato e meu pai me perguntou:
– Sobre o que você anda pensando?
– Sobre a imortalidade.
Antes de ir pro mato, estava entediada numa noite e decidi pegar um novo livro pra ler. Se, por acaso, você se pergunta como posso sem querer estar lendo 9 livros ao mesmo tempo – ou por vezes até 11 –, é assim que acontece. Um dia tô entediada e decido tentar algo novo. É um humor, uma energia, uma vibe. Mas parece que foi o acaso que me fez pegar Todos os Homens são Mortais, da Simone de Beauvoir, numa noite insone de dezembro.
Existem dois livros dos quais cresci ouvindo meus pais falarem: As Cabeças Trocadas, do Thomas Mann, e esse da Simone de Beauvoir. Perdi a conta de quantas vezes ouvi na mesa do jantar a história do homem que decidia tomar o líquido da imortalidade. Numa noite, lhe é oferecido o líquido e, para provar que é funcional, antes dão a um rato, o qual matam e logo em seguida volta a vida. “Os anos passam e passam, e o medo do homem é que, um dia, tudo no mundo vai acabar e só vão sobrar ele e o rato”, meus pais contavam a ponto de eu poder ver a cena inteira, de mal querer ler o livro de tanto ouvir aquela história.
Mas naquela noite de dezembro, não querendo ler os outros livros começados empilhados na minha cabeceira, me esqueci totalmente da história que ouvia e só peguei o livro por curiosidade. Eu não esperava nada dele, mas mesmo assim o começo me surpreendeu. Na cena inicial, uma atriz, Régine, acaba de sair de uma apresentação de sua peça e se dirige a uma festa de conhecidos. Ela repassa tudo que aconteceu e acontece, comparando a recepção da sua performance com a de sua colega mais jovem. Seu ciúmes e sua inveja são tão bem descritos que me assustei. Acho que passei anos demais na internet com gente falando superficialmente sobre feminismo e sororidade. Tinha esquecido que mulheres podem também competir umas com as outras e isso pode ser descrito como algo comum, não é um comportamento que deve ser corrigido. Na verdade, não é nem uma questão em si. Porque o que importa é a ambição de Régine. Não a ambição neoliberal da conquista e do acúmulo, não é uma questão de trabalho e feitos pessoais. Régine é ambiciosa porque sabe que é mortal. Porque sente sua mortalidade latente em sua pele. É o medo da morte que a faz buscar outras formas de imortalidade, mas li como sua feminilidade que fez achar absurdo quando um homem lhe contou que era imortal. Imagina só: existe um homem no mundo que acredita piamente que nunca vai morrer.
Mas o homem, Fosca, prova sua imortalidade. E, daí em diante, tudo muda.
Régine é amada por um imortal. Depois de descobrir isso, ela não consegue fazer mais nada além de estar com ele o tempo todo. Ela fica obcecada pela a ideia de uma imortalidade através dele. Se ela for a mulher que ele mais amar em toda a vida, ela nunca será esquecida, ela será eternizada em sua memória, ela se tornará também imortal. Mas Fosca odeia viver. A paixão que Régine tem pela vida é oposta a seu sentimento. Fosca sempre existirá. A vida deixou de ser importante. Régine não consegue compreendê-lo, e começa a deixar tudo de lado para estar com ele. Fosca, percebendo que está fazendo mal a ela, decide ir embora. Mas ela o encontra e, então, ele decide finalmente fazer o que ela lhe implorava dia e noite: contar sua história.
Lendo a primeira parte do livro, parei muitas vezes me perguntando se já quis ser imortal.
Não, é tempo demais.
Mas, por um breve período, quis dominar o mundo. Tem matérias em revistas sobre isso. “Aqui, somos todas megalomaníacas”, dizíamos com certo charme e humor; era uma verdade profunda. Perdi a conta das vezes que comemorei com minhas amigas o quanto nossas palavras e traços estavam chegando a mais e mais gente, o quanto que nosso trabalho estava mudando as pessoas e a forma de fazer o que fazíamos e como isso tudo estava começando a ser reconhecido. Nessa época, pulei muito de alegria com as coisas que fizemos, tudo que alcançamos. Hoje lembro da sensação como se fosse de fato a de se sentir no topo do mundo, mesmo que soubesse que não era nada disso. Mas respirar era diferente naqueles tempos. Mesmo que a crise climática já estivesse há pelo menos uma década instaurada, a sensação era a de sentir o ar puro e rarefeito depois de uma longa trilha. Meu pulmão inflava e se preenchia.
Tudo que fizemos pareceu enorme. Tudo que fizemos pareceu minúsculo. No fundo, acho que nunca vou ter a consciência da magnitude real de tudo aquilo. Mas mesmo assim eu andava de um lado pro outro no meu quarto pensando em mais e mais ideias do que podíamos dizer e fazer. Eu traçava mil planos para os nossos futuros.
Aquele quarto abrigou mil versões de mim. Desde quando a luz do corredor precisava ficar acesa pra eu dormir até minhas noites insones terminando trabalhos em cima do prazo. Foi no chão daquele quarto que eu e minhas amigas passamos tardes comendo bobagem e fofocando, foi ali que tentamos adivinhar nossos futuros entre cartas, estrelas e risadas.
Deitada na bicama mais baixa, minha prima mais velha disse: meu sonho é dominar o mundo. Eu ouvia seus planos para dominação mundial enquanto me perguntava quem raios quer uma coisa dessas. Parecia coisa do Pinky e Cérebro, não soava real. O mundo só dá trabalho, eu pensava no auge dos meus 16 anos. Eram os anos que eu chorava pela crise na Palestina pra não chorar por mim.
Mas os anos passaram e foi a minha vez de ter a idade da minha prima. Daí, eu entendi. E também me deixei levar. Escrevi poemas como se nossa vida fosse feita de guerras, como se nós vivêssemos a História-com-H-maiúsculo. Só depois fui me dar conta de que a vivemos mesmo e que isso podia ser horroroso.
Quem raios quer dominar o mundo? Quem raios daria o mundo pra pessoa amada? O mundo é complicado demais. Sem contar que esse papo de domínio é tão imperialista.
Metade da história de Fosca é essa, um homem se sentindo poderoso o suficiente para decidir dominar um condado, um país, um continente, o mundo. Demorou 200 anos pra ele perceber que não deveria haver desigualdade social. “Bom, pelo menos ele percebeu”, disse a mesma prima que quis a dominação mundial. Nós duas rimos e seguimos com outros assuntos.
Mas o que é que dá essa vontade? Porque eu, ela e esse personagem fictício sentimos a mesma coisa. Porque Simone de Beauvoir escreveu um homem que demorou séculos pra chegar a conclusões que nós chegamos em menos de 30 anos.
É o medo da morte? Nunca achei que tinha medo de morrer até alguém me perguntar o motivo de eu não fazer alguma coisa e eu responder num tom cômico-exasperado “porque eu não quero morrer”. Nunca achei que tentaria sobreviver a um apocalipse até viver os primeiros meses de lockdown. Pra ser honesta, ainda acho que o medo da morte é demodê. Mas tantas coisas passaram, talvez eu também seja uma dessas coisas. Que curioso é se chamar de coisa e decidir que qualquer um pode ler eu me chamando assim.
Mudei muito. Culpe os estudos, as pessoas, as músicas, o tempo, a fortuna adversa. Gosto dessa expressão. Vem de uma tradução do monólogo do Hamlet que meu pai declamava tanto em casa que acabei decorando de tanto ouvi-lo. Sabê-lo de cor virou uma espécie de herança:
Ser ou não ser, eis a questão. Uma alma valorosa, deve ela suportar os golpes pungentes da fortuna adversa, ou armar-se contra um dilúvio de dores, ou pôr-lhes fim, combatendo-as? Morrer, dormir, mais nada, e dizer que por esse sono pomos termo aos sofrimentos do coração e às mil dores legadas pela natureza à nossa carne mortal; e será esse o resultado que mais devamos ambicionar? Morrer, dormir, dormir, sonhar talvez; terrível perplexidade.
A memória do meu pai parava aqui e, portanto, a minha também. A voz mais grossa dele segurando uma caveira imaginária ao marcar sua fala: terrível perplexidade. Acho curiosa a escolha aqui, perplexidade. Mas meu pai sobressalta o terrível, então eu também. Não consigo ler esse monólogo de outra forma. Mas pesquisando para ter certeza de que lembrava corretamente, vejo que continua:
Sabemos nós porventura que sonhos teremos, com o sono da morte, depois de expulsarmos de nós uma existência agitada? E não deverei eu refletir? É este pensamento que torna tão longa a vida do infeliz!
O tema da existência segue em Todos os Homens são Mortais. Fosca existe, ele nunca para de existir. Não importam os períodos de guerra ou paz, não importa se na Itália, Alemanha, México, França. Com ou sem amores, a vida é sempre a mesma.
Ele tenta explicar a Régine, mas ela demora para entender. Ela tenta fazê-lo mudar de opinião, mostrar a sua eternidade, é uma questão de perspectiva. Ela o leva para conhecer sua cidade de infância e lhe diz assim com essas palavras:
– Não mudou – comentou Régine. – Que sossego! Está vendo, Fosca, para mim é a eternidade: essas casas calmas, o ruído desses sinos que dobrarão até o fim do mundo, esse velho cavalo que sobe a ladeira, como já o fazia seu avô na época de minha infância.
Fosca meneou a cabeça.
– Não… Não é a eternidade.
– Por quê?
– Não haverá sempre aldeias, carroças, cavalos velhos.
– É verdade – concordou ela impressionada.
Envolveu num olhar a paisagem imóvel sob o céu azul, imóvel como um quadro, como um poema:
– Que haverá no lugar?
– Talvez uma grande propriedade agrícola com tratores e campos geométricos; talvez uma cidade nova com andaimes e fábricas…
– Fábricas…
Era impossível imaginá-lo. Uma coisa era certa: essa campanha, mais velha do que qualquer recordação, desapareceria um dia. Régine sentiu um aperto no coração. De uma eternidade imóvel, ela poderia ter sua parte, mas subitamente o mundo não passava de um desfile de visões fugazes e suas mãos estavam vazias. Olhou para Fosca. Quem poderia ter mãos mais vazias do que ele?
O livro segue com guerras entre Florença e Roma, a Alemanha em crise com a chegada de Lutero, a descoberta do Novo Mundo, a luta entre indígenas e colonizadores. Acontece muita, muita coisa. Fosca não morre, afinal de contas.
A escrita vertiginosa me hipnotiza enquanto lia devagar devagarinho, porque precisei de longas pausas entre parágrafos só pra absorver tudo que li, tudo que isso me fez pensar. Às vezes, fechava os olhos como se tivesse todo o tempo do mundo, adormecia sem perceber. Pensamentos e sonhos se entrelaçam e me confundem; acordo depois do sol trocar o lado do céu.
Régine pede:
– Não continue; é inútil. Será sempre a mesma história, eu sei.
– A mesma história e, a cada dia, diferente… É preciso que a ouça.
Transcrevo esse trecho assim dissociado de todo o resto do livro e penso em Karl Marx. Lembro que uma amiga me pediu há pouco tempo pra explicar pra ela como é aquela história de eu ser parente do Marx. Outra amiga, que conheço a 10 anos, ficou surpresa com aquela informação. É, acaba que não saio falando disso por aí porque não tem um jeito razoável de contar uma informação dessas. Mas quando sou lembrada da árvore genealógica em que eu seria tatatatara-sobrinha neta do Marx, penso: quem diria que sou nepobaby do manifesto comunista! Mentira, penso mesmo que perdi o timing pra fazer essa piada no tuíter. Mas nem tem mais tuíter de qualquer jeito1. Mesmo a mudança pro substack fiz com o gosto um pouco amargo. Mas, então, volto a pensar em Fosca tentando explicar: essa é a eternidade. Tudo muda. É a mesma história e, a cada dia, diferente.
Hoje em dia, associamos “fortuna” a algo positivo, assim como abundância. São palavras que relacionamos a dinheiro, porque qual sorte maior que ter um monte de grana sob o capitalismo, não é mesmo? Mas quando Hamlet/ Shakespeare fala de fortuna, ele tá falando do acaso, do destino, da sina, da ventura. É essa lista de sinônimos que encontramos para o tempo futuro – o qual, dependendo, pode ser visto como totalmente aleatório ou impossível de escapar. Mas acho interessante de pensar que, independente de ser bom ou ruim, é adverso. O tempo vem como um adversário, como algo contra quem jogamos. Somos mortais, afinal de contas.
Lembro de quando uma amiga minha foi fazer prova para o mestrado e disse a ela que estava torcendo para o melhor, fosse o que fosse. Disse desse jeito porque era verdade, o que eu mais queria é que ela estivesse bem e, às vezes, isso significa não conseguirmos as coisas que queremos naquele momento. Outras vezes também, a gente só muda de ideia.
Me assusta um pouco como as pessoas valorizam a teimosia. E isso falo eu, teimosa que só. Não que ache teimosia necessariamente ruim; eu também fui uma criança que cresceu com os Saltimbancos cantando que “esperteza, paciência, lealdade, teimosia, e mais dia, menos dia, a lei da selva vai mudar”, mas pra isso precisamos dos quatro juntos. Precisamos das unhas, patas, dentes e bicos. Precisamos da gata, do jumento, do cachorro e da galinha. Precisamos da burguesia artística, dos trabalhadores, do exército e da classe média. É esse o ensinamento, a união das classes, não fui eu que disse, tá no livro de linguística do primeiro ano da faculdade.
Enfim, me assusta essa coisa de valorizar teimosia por teimosia, ser cabeça dura e pronto. Como se não mudar de opinião fosse algo pra se ter orgulho. É curioso porque tenho muita dificuldade com novas ideias. Sou uma pessoa que tende a dizer “não” de primeira, mas hoje percebo como uma forma de ganhar tempo pra considerar outras ideias, para daí então poder fazer minha escolha de verdade. Nego uma ideia para poder processa-la com calma, no meu ritmo, com as minhas considerações. Se, depois disso, ela faz sentido pra mim, não é difícil acatar. Não é difícil mudar.
Antes, eu achava que era. Achava que todos os meus medos vinham disso, da mudança. Achava que eu era dura, não sabia mudar. Mas hoje percebo que não é verdade. Nunca quis esquecer, mas lembrar não significa continuar a mesma.
Não é engraçado com as coisas são? Não podemos ser duras nem moles demais. É como uma planta com seu caule a levantando do chão mas pronto para se envergar. Um caule duro demais não sobrevive, quebra fácil com um vento mais forte. Mas existem tantos tipos de planta que falar assim é até maldade. Penso nos bambus da região da casa dos meus pais. Eles vão crescendo unidos até que bate um vento e, vuuush, eles caem que parecem medida feita com transferidor, formam retas que cortam a floresta. Mas é também assim que se espalham.
As bananeiras, por sua vez, sempre aparecem em três, como uma pequena família. Elas crescem e sugam tudo do solo ao seu redor, não sobra nada pra ninguém ali do lado. Quando estão grandes o suficiente pro vento pegar de jeito, sua própria folha vai se cortando. Os cortes fazem com que o vento passe entre a planta e ela consiga se equilibrar. Na minha memória, um amigo me chamou atenção pra isso, “não é incrível que ela se arrebenta pra sobreviver?”, mas acho que isso foi invenção minha.
Não é difícil entender que é o melhor adaptado que sobrevive, mas em 2020 me peguei com ódio profundo de ter que me adaptar. Não foi no primeiro mês, não. Em março daquele ano, eu ainda ia descalça pegar sol no quintal da antiga casa enquanto ouvia o Emicida: a vida sempre vence. Mas já em abril não era mais assim. Tenho essa lembrança física de chorar de raiva enquanto dizia à minha mãe que me recusava a me adaptar. “Eu não quero encontrar minhas amigas e elogiar as máscaras delas”, eu soluçava de tantas lágrimas. Não queria viver nesse mundo.
Tinha ódio porque as coisas não precisavam ser daquele jeito, havia solução, mas não estava nas minhas mãos. Não me revoltava a falta do meu controle próprio, porque havia pelo menos um ano que tinha abolido essa palavra do meu vocabulário, mas me revoltava saber que não precisava ser daquele jeito, que só era assim por pura maldade e vontade de destruição. Mas eu não tinha tanto o que fazer.
Veio, então o dia que meu horóscopo disse:
use o poder que você sempre teve, a adaptabilidade.
Eu, virginiana, terra mutável, sempre me perguntei o quanto que minha capacidade de adaptação era de fato algo bom. Mas naqueles tempos essa dúvida era mais dolorosa. Não me convencia o argumento da sobrevivência e da sanidade mental, por mais que soubesse que essa era a única opção razoável. Mas ver outra pessoa falando assim nesses termos comigo, um horóscopo escrito pra ninguém, escrito pra mim, mudou algo dentro de mim. Revoltada ou resignada, a vida continuava.
Juntei minhas forças: a vida sempre vence.
Fosca, o personagem imortal, discorda veementemente. Para ele, o que vence é a morte. Anos vão e anos vêm, e seja na guerra ou na paz, todos morrem. Menos ele. Enquanto isso, eu me perdia em seus relatos sempre iguais e tão diferentes. As imagens fugazes me hipnotizavam e dormia mais uma vez.
Como posso gostar de um livro que me dá tanto sono? Como um livro sobre a imortalidade pode me fazer dormir tanto? Morrer, dormir, dormir, sonhar talvez.
Seguem as fortunas adversas. O chip do celular que parou de funcionar e a operadora que só me vende outro com biometria facial. As sequelas do que ficou da pandemia global, do câncer que minha mãe curou, da perna machucada do meu pai, da minha postura ruim. O quadro depressivo, o prazo final da entrega da dissertação, a despedida da casa, o desafio de morar sozinha. A iminência da morte de tudo que é vivo ao seu redor, de tudo que gostaria que estivesse ao meu redor mas não está.
Está no corpo. A coluna envergada, a tendinite, a fotofobia. As cicatrizes, as pintas, as estrias. O quadril mais largo, os seios maiores. Às vezes olho uma foto minha e me pergunto se foi meu nariz que cresceu ou é a distorção da câmera do celular. Me olho no espelho e me vejo de mil formas diferentes. Preciso cortar o cabelo. Ele me escuta e acorda lindo na manhã seguinte. Preciso cortá-lo mesmo assim.
Entre os anos que passamos em casa, pensei meu corpo como potência desperdiçada. Via suas, minhas mudanças e pensava que isso era a vida tirando a potência de mim. Não era um pensamento triste, era só um pensamento. Pensava em conhecidos cujos corpos se modificaram porque a vida aconteceu. Pensava em quando ria com minhas amigas imaginando as vidas grandiosas que jurávamos que teríamos. Não considerávamos a mudança climática, a volta do fascismo, uma pandemia global, a destruição da democracia. Eram sonhos. E sonhos não envelhecem.
Durante a adolescência, eu costumava voltar pra casa depois da escola e reassistir Os Sonhadores. Depois de um dia inteiro sofrendo com aulas de exatas em que não entendia quase nada, eu me permitia me perder entre imagens e diálogos sobre cultura e revolução. Chorava todas as vezes que Edith Piaf começou a tocar ao fundo da mesma maneira que chorava todas as vezes que ouvia a voz do Milton Nascimento em Clube da Esquina II. Eu ainda não conhecia a palavra feminismo, então ainda sabia me identificar quando alguém falava sobre homens, e minhas lágrimas escorriam porque se chamavam homens também se chamavam sonhos e sonhos não envelhecem. Eu não entendia por completo a segunda parte dessa estrofe. Precisei ser maior de idade para entender. Precisei estar na rua, na faculdade e achar que isso era a mesma coisa que estar no mundo.
Não era um achismo, era uma certeza. Eu conseguia sentir nos meus ossos, era físico. O poder que existia em mim, que eu sentia em nós pulsava como um coração, se espalhava pelas veias do corpo, da cidade, dava pra ver de longe, pergunte pra Lorde ou a qualquer astronauta que estava no espaço nesse momento.
Nós tínhamos tudo. Eu me perdi. How can a person know everything at 18 and nothing at 28?
Tento até hoje colocar em palavras. No livro que escrevo há pelo menos 4 anos, minha personagem principal também tenta se lembrar. Demoro para escrevê-lo porque é coisa demais. Porque eu também não lembro e preciso pesquisar, preciso escolher, preciso também seguir com a minha vida. Passaram-se 10 anos, mais até. Passaram vidas inteiras e já não sou a mesma, mesmo que me sinta a mesma, apesar de não me sentir igual. Tento explicar a mim mesma: não me sinto mais fragmentada. Tudo sou eu, mesmo que eu não seja tudo. Volto a imagens que aprendi nesses anos todos: as 12 casas de um mapa astral, os pixels que formam o que vemos em tela, estou me perdendo talvez. Então por que me sinto bem? Por que perder-se e encontrar-se já não parecer fazer mais sentido pra mim?
A Anna Vitória me ligou esses dias e me contou sobre Os Anos, da Annie Ernaux. “Eu penso muito em você, amiga”, ela me disse do jeitinho dela que faz meu coração ficar quentinho. É essa coisa de crescer e ir se separando da história do mundo, de ser jovem e não conseguir se dissociar dos acontecimentos históricos, mas ir crescendo e simplesmente seguir em frente, existem outras coisas pra lidar.
Então, isso é crescer? Isso é o tempo passar? Volto a Fosca, um homem que deixou de ser homem, um homem que no meio da Revolução Francesa percebeu que realmente não tinha mais jeito, ele existiria sempre no mundo, mas não pertencia mais a ele. Minto: ao fim do livro ele se diz “um homem de nenhum lugar”, como se nunca houvesse pertencido. Nenhum lugar porque Fosca, tendo se autocondenado à eternidade, não tinha mais presente, passado ou futuro. Tudo era um único tempo porque ele já não conseguia mais se conectar. Ao passado, porque não lembrava. Ao presente, porque só via mortos. Ao futuro, porque se repetiria. Fosca diz: “Nada tinha a esperar”. E porque não esperava, não podia ser humano. Não podia acreditar, se motivar, amar, sonhar. É preciso tempo para os sonhos. Mesmo que eles não envelheçam, nós envelhecemos. Nossa potência se gasta pouco a pouco. Destruímos e reconstruímos nossos palácios.
Escuto, então, a voz do Gil dizendo pacífica e suave que, se eu quiser falar com deus, tenho que virar um cão, tenho que lamber o chão dos palácios, dos castelos suntuosos do meu sonho, tenho que me ver tristonho, tenho que me achar medonho.
Por anos, isso me impressionou. O Gil é um desses homens que é, na verdade, orixá em terra, tenho certeza. Mesmo há anos com ele nos preparando pra sua morte, acredito piamente que o Gil não morre, só vai embora. Mas eu, Clara, sou reles mortal. E como carne, me revolto.
Por anos não consegui ouvir essa música sem pensar: eu é que não vou ficar por aí lambendo chão de palácio!! Achava que vinha da minha revolta de adolescente dada ao comunismo, essa coisa que faz a gente querer queimar castelos de vez em quando. Mas agora vejo minha cachorra velha deitada de lado lambendo o chão da casa de olhos fechados de prazer. Dou risada com ela, do quão linda ela é e então chamo-a carinhosamente de fedida. Às vezes, acho que fico tempo demais olhando pra ela. Outras, acho que devia ficar mais junto com a Léia, fazendo mais carinho nela. Penso no que minha antiga terapeuta disse, que olhar um cachorro é um tipo de meditação. Sempre achei meditar algo insuportável, mas quando olho pra Léia consigo entender o que descrevem as pessoas que meditam. Então, tenho medo da sua morte.
Não é medo de morrer, é medo da última coisa ser a dor. Não é medo de viver, é medo da dor ser contínua. Mas sem medo, não existe coragem, risco, adrenalina, paixão. Sem dor, não existe angústia, calma, piada, risada, pensamento, emoção. Que exagero, não? Tenho apelado muito no que digo e escrevo. Aumento tudo, mas não como amplificador, quero aumentar como o silêncio na floresta. Aquilo que faz ouvirmos cada som ecoado em sua pequeníssima magnitude.
Se levarmos em conta as palavras do Gil, a criatura de Frankenstein estava tão perto, não? Ele carregava o medo em sua pele deformada, a prova viva dos horrores da humanidade, uma criatura medonha, a realização de um sonho ou uma brincadeira de deus (homem). A completude do sonho de Victor Frankenstein se tornou seu maior pesadelo. E foi ele não encarar aquele medo que fez com que fosse perseguido dia e noite até o fim da sua vida.
É, de certa forma, cíclico: o medo de um, a solidão de outro. E parte de mim torce pela criatura enquanto outra torce por Victor, mas as duas são a mesma parte, são uma só, são eu, humana, virginiana, terra mutável.
Não consigo me conter: nunca li um livro mais virginiano do que Frankenstein. Uma autora que quer fazer um tratado sobre a literatura e a humanidade através da invenção de um novo gênero? Virginiana. Um narrador que se perde tanto em pensamentos que decide fazer seu projeto pessoal ser brincar de deus? Virginiano. E a criatura… a criatura que se pergunta:
If such lovely creatures were miserable, it was less strange that I, an imperfect and solitary being, should be wretched. Yet why were these gentle beings unhappy?
Na astrologia, um signo é composto por um elemento (terra, fogo, água, ar) e um ritmo (cardinal, fixo, mutável). As combinações dessas duas características dão nos 12 signos do zodíaco e elas seguem uma ordem: cardinal (começo), fixo (meio) e mutável (final), fogo (ação), terra (fisicalidade), ar (razão), água (emoção). É assim que se faz a ordem: áries (fogo cardinal), touro (terra fixa), gêmeos (ar mutável), câncer (água cardinal), e assim por diante. Virgem é o sexto signo do zodíaco, é o meio, o momento de transição entre pessoal e social, tem muito o que se pode falar sobre esse signo, assim como tem muito que se pode falar sobre qualquer outro. O que acho curioso, no entanto, é que eu, virginiana, um tempo atrás comecei a pensar em mim mesma como uma espécie de plantinha – um ser vivo conectado ao mundo, à terra, um ser vivo que nasce, cresce, dá frutos e flores, seca, revive, se adapta às estações, até que um dia morre. É, de certa forma, cíclico. Mas é também único. Cada planta é uma planta. Eu sou eu. E todos nós pertencemos aqui, ao mundo.
– A mesma história e, a cada dia, diferente… É preciso que a ouça.
Terminei de ler Frankenstein no mesmo mês que a Taylor Swift (sagitariana, fogo mutável) lançou Anti-hero. Assim como reputation foi um audiobook de O Grande Gatsby, essa música Anti-Hero é um audiobook de Frankenstein, ou o Prometeu Moderno:
Sometimes I feel like everybody is a sexy baby
and I'm a monster on the hill
Too big to hang out, slowly lurching toward your favorite city,
pierced through the heart, but never killed
É medonho, não é? Somos medonhos. Criamos medo. Seja pros outros, seja pra nós mesmos. E um dia isso acaba também. Um dia, não seremos, não existiremos, é o fim. A eternidade continua sem nós.
Régine, que escutou pacientemente toda a história de Fosca, quis gritar. “Isso acabará”, disse Fosca. Ele não estava errado, estava? Ele foi embora. Ela soltou seu primeiro grito.
É só um. Só um grito porque Régine é uma personagem, sua história acaba muito antes das nossas. Sua história tem coerência, é história no sentido de narrativa, uma palavra tão difícil de usar hoje em dia. Sua história segue uma linha assim como a de Frankenstein e sua criatura, ou mesmo o eu-lírico de Anti-Hero ou de Seu eu quiser falar com deus.
Mas eu estou aqui. Sem linha. Eu penso no que não era para a criatura de Frankenstein ou o eu-lírico de Anti-Hero entenderem, os versos seguintes da música do Gil:
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Ainda não acredito que conseguiria ser um cão que lambe o chão dos palácios suntuosos etc. e tal, mas também já não me revolto com a imagem. Entendo-a um pouco mais, mas nunca o suficiente.
Continuo pensando em Fosca dizendo que, sem o medo da morte, não tem nada. Gil continua cantando: se eu quiser falar com deus/ tenho que me aventurar/ tenho que subir aos céus/ sem cordas pra me segurar. Deus é, para os dois, Gil (existente que deixará de existir) e Fosca (inexistente que sempre existirá), a morte. E os dois aprendem a aceitar seus destinos em suas existências e não-existências. Os dois aprendem a aceitar o nada, nada, nada, nada do que pensava encontrar. O mesmo caminho e, a cada dia, diferente.
Foi ainda antes da pandemia que parei de conseguir imaginar futuros, mas a pandemia não ajudou. Assim como foi ainda antes da pandemia que parei de pensar em termos de “controle” ou, por vezes, mesmo “sentido”. A pandemia também não ajudou com isso.
Foram fortunas adversas. E elas me levaram a esse momento em que estou hoje. Por um lado, me sinto desconectada. É como se eu já não fosse mais eu, porque tudo aquilo que era Clara se desfez em suas significâncias. Ao mesmo tempo, me sinto em sintonia com tudo, com o universo inteiro, a natureza. Vou e volto, terra mutável. Aprendi a me soltar do passado. Desaprendi a imaginar futuros. Mesmo assim, sinto a presença dos tempos – todos os tempos, um só – ao meu redor, sob mim, dentro de mim. Há muito tempo espero uma crise, mas ela nunca vem. Não é resignação, porque ainda me revolto. E ainda penso naquele verso de Nosso Tempo, do Drummond. Eu não sou as coisas e me revolto. Mas não quero explodir. Estou bem adaptada vivendo as estações. Então, sigo pensando sobre a única coisa que se tem para pensar, sigo falando da única coisa que se tem para falar: a mudança. Clara imortalidade temporária.
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é um desses textos que quero e não quero comentar. quero absorver, sorver suas palavras, mas melhor fazê-las em silêncio. mas igualmente quero lhe dizer que entendo, entendo tudo e não entendo nada ao mesmo tempo, e é um desespero porque nós nos sentimos únicos e especiais, mas a megalomania, o delírio, a reflexão sobre mortalidade—
conheci sua newsletter hoje, sinto-me grata por isso. não lembro quem deu rt no twitter, mas obrigada, porque sua forma de organizar as palavras parece fluxo de mar. você diz que olhar para cães parece meditação, eu lhe entendo: sinto o mesmo ao olhar para minhas gatas. também compreendo meditação ao boiar em água. sinto-me fluida, conectada e dispersa. um dia escrevo sobre.
enfim. tudo de melhor para você~