(segredos do viajante)
Segredos do viajante
É segredo o medo da partida, a falta de animação para ir.
A vontade de não pensar na volta, de não saber como
voltar depois de tudo que se passou.
É segredo quando ida se torna vinda, e quando volta
se torna partida.
É segredo o silêncio, o cheiro de maconha e mijo das ruas de lá
(uma maconha e um mijo diferentes dos de cá).
É segredo como todas as despedidas sempre são muito antes
ou muito depois do abraço final.
O estranhamento da chegada do lado de lá, onde tudo parece mais feio
do que lhe foi prometido.
Demora um tempo pros tijolos e letreiros fazerem sentido, as feições
parecerem bonitas, o andar não ser esquisito.
O estranhamento da chegada do lado de cá, onde tudo parece mais feio
do que você lembrava.
Demora um tempo pra reencontrar a sua realidade, se familiarizar
com o que mudou, reajustar o relógio interno.
A beleza é o costume,
os detalhes que só percebemos depois
de tempo demais,
vida demais.
A beleza é o conhecimento profundo
da própria realidade.
É segredo o cocô. Poderia escrever um poema inteiro
sobre isso. Como o cheiro do cocô muda, a cor
é diferente, a textura é outra. De repente, você não reconhece mais
o que sai de si, sua produção primordial.
O horário também pode mudar. O que era todo dia de manhã se confunde,
é o fuso horário
que te tira o sono e a cagada.
Existe sempre um medo,
uma solidão,
um vazio.
Existe sempre um êxtase,
uma abertura,
uma completude.
É segredo que somos mais corajosos,
que a lembrança de que tudo é passageiro nos faz nos jogar no abismo.
É segredo que esquecemos da passagem,
que chega um ponto que tudo parece permanente e nos recolhemos assustados.
Sabemos que não cumpriremos as promessas, mas as falamos mesmo assim.
Sabemos que não é amor, mas usamos palavras como se de fato as sentíssemos.
Sabemos que tudo é insustentável, não sabemos dizer adeus.
Você mentiu para que nunca mais me abraçasse,
eu menti para que você achasse que haveria outra hora,
outro dia,
outra possibilidade.
Eu queria te dizer que você me mudou um pouquinho.
Você não conseguiu me ver porque eu te mudei um pouquinho também.
Tem o poder quem parte primeiro.
Tem o poder quem fica por mais tempo.
É segredo.
É o maior segredo de todos.
A mudança é quem detém o poder.
Nascer já é lançar-se ao abismo.
Mesmo deus, vivo ou morto, é também um viajante.
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🚀 Olá, astronautas! 🚀
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Você devia mostrar esse poema pra todo mundo que te perguntar como foi a sua viagem, a Juia me disse quando terminou de ler o poema que escrevi nos meus últimos dias do lado de lá do Atlântico.
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É a sua cara não escrever nada do que você prometeu e no final das contas só enviar um poema surpresa, disse a Anna Vitória rindo quando falávamos das nossas newsletters e de como eu não estava conseguindo terminar de escrever nada por qualquer que fosse o motivo. Eu ri e concordei: É provavelmente o que vai acontecer. Ela disse que me apoiava.
***
Ao caminhar de volta pro hotel onde estava hospedada em Dublin na noite do meu aniversário, mandei um áudio pra Anna. Eu tinha acabado de ver Lady Bird em um cinema ao ar livre que tinha esbarrado no parque enquanto voltava do meu longo dia explorando a cidade. A noite estava fria apesar de ser verão, eu estava me sentindo plena como só o dia do meu aniversário me faz sentir e tinha acabado de perceber que tinha reaprendido a narrativizar a vida. Sem medo, sem dificuldade, sabendo que aquilo era algo que eu estava inventando para mim mesma e que eu podia mudar se quisesse. Foi na cena em que a Lady Bird está se arrumando pro baile de formatura que pensei esse momento é extremamente narrativizável, então contei pra Anna Vitória quando o filme acabou.
Enfim, eu sei que você já conectou tudo que eu conectei na minha cabeça. Essa noção de independência e se descobrir no mundo e ser você no mundo e esse tipo de coisa. Então, eu não vou analisar isso. Eu vou guardar pra ver se finalmente consigo escrever a minha newsletter. Mas eu queria te contar.
Foi o nosso momento did you feel emotional the first time you drove in Sacramento, a gente decidiu.
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Eu não terminei de escrever essa newsletter do áudio pra Anna, por mais que tenha tentado cinco versões diferentes dela. Escrevi muitos poemas no entanto. Escrevi muito sobre o lado de cá e o lado de lá, percebi que sou muito mais anarquista do que pensava. Enquanto existem fronteiras/ continuo cá, estrangeira de mim, escrevi. Não acredito que consiga ler esse poema em voz alta. Já foi mais emocional do que esperava recitar o Segredos do viajante na terapia. Recitei porque estávamos falando de cocô, mas também porque é tudo o que tenho a dizer sobre o assunto.
Acontece que as memórias ficam rondando a minha cabeça aleatoriamente e eu preciso falar mais e mais, mas sempre o mesmo. Releio o poema.
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Estou esquecendo de tudo.
Em partes, é como a Angelica fala de quando conheceu o Hamilton: like a dream you can't quite place. Descobri por causa do Genius que esse verso pode ser uma referência a uma carta que a verdadeira Angelica escrever ao verdadeiro Hamilton: I sometimes think you have now forgot me and that having seen me is like a dream which you can scarcely believe. Eu devia usar isso pra flertar com o xodó, seguindo as comparações já feitas com essa história, mas eu também já não lembro dele direito. É como se ele também fosse parte da invenção.
Tudo parece um sonho, um outro plano astral. Até a forma com que lembro parece ser como lembrar de algo irreal. Tudo parece um sonho e ele está se esvaindo pouco a pouco da mesma maneira que acontece quando estou acordando. À medida que vou tomando consciência, começo a entender que tudo aquilo não é realidade. As imagens continuam e eu tento usar o pouco da minha consciência pra lembrar, tento me segurar nas últimas cenas mas raramente consigo lembrar quando estou oficialmente acordada.
É estranho estar esquecendo. Li num livro enquanto estava lá sobre como a memória se modifica, como começamos a esquecer de algo assim que deixamos aquela coisa. Eu acreditei porque é o que sinto.
É um pouco desesperador, mas é também extremamente mundano. Estamos em um momento que a realidade como um todo é desesperadora. Mas nesse meio tempo aprendi a lidar com o caos. De alguma maneira inexplicável, estou bem.
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Admito: cansei do webestilo das escritas que estão no mundo virtual. Parei de escrever por um tempo porque me sentia nesse saco gigante e amorfo de pessoas dizendo as mesmas coisas do mesmo jeito e não aguentava mais. Eu não sabia como parar. Estava viciada e ninguém conseguia me ajudar. Eu continuava vendo os mesmos discursos e todos que os pronunciam parecem tão certos deles, como se fossem verdades absolutas.
escreva-aquilo-que-você-quer-ver-no-mundo.doc
escreva-aquilo-que-seu-eu-adolescente-precisava-ler.doc
Por quê?
Ler e escrever são coisas diferentes. Eu queria pode dizer frases bonitas como ler é escapar da realidade, escrever é encarar a realidade e fazer sentido dela. Mas não acredito nisso de verdade. Tudo bem se alguém acreditar. A gente pode pensar coisas diferentes. A gente só não pode ferir a existência dos outros.
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Admito: descobrir o niilismo da maneira como descobri fez com que muitas coisas mudassem dentro de mim. Eu sabia desde o começo que a vida não ter sentido era algo positivo, que isso me dava a liberdade de criar o meu próprio sentido, a minha narrativa. Mas isso era teoria, racionalidade. Dentro de mim, tudo o que conseguia sentir era o peso infindável das narrativas e não sabia o que fazer com isso.
A liberdade, muitas vezes, é assustadora. Ela vem com uma responsabilidade que eu não sabia lidar e que me paralisou. Precisei de um ano tentando entender o que raios significa ter poder de narrativas. Precisei entrar em bons termos com o poder que de repente senti que eu tinha.
Me assustou profundamente quando vi as reações das pessoas ao que eu escrevia. Me assustou principalmente a reação das pessoas ao lerem a carta aberta que escrevi para a terceira edição da Deriva no primeiro semestre desse ano. Me assustou o quanto as pessoas se emocionaram com o que eu tinha escrito. Foi bizarro ver a reação no rosto da minha amiga ao terminar de ler o texto, me dizendo o quanto que aquilo era lindo e como eu devia mandar o link pro cara para quem a carta é de fato endereçada. Foi mais bizarro ainda receber a resposta dele, uma longa mensagem que não fazia o menor sentido mas tinha muitos sentimentos. Eu não tinha contado pra ninguém, mas aquele texto tinha sido completamente forjado, construído sem sentimentos mas com muito cuidado para criar emoções específicas nos leitores. Aquele texto foi um trabalho, o pitch escolhido dentre outros quatro que sugeri.
Ver como algo que escrevi sem nenhum sentimento comoveu pessoas profundamente me fez perceber de uma maneira diferente o poder das narrativas. Mas você sempre soube disso, disse minha psicanalista. Sim, mas agora eu estou sentindo na pele, é diferente, respondi. Ver de tão perto esse poder mexeu em algo dentro de mim. Uma coisa era a narrativa que eu criava para mim mesma sobre a vida, outra coisa era a narrativa que eu criava para os outros. Eu me senti uma manipuladora cruel e insensível, perigosa demais por causa do poder que tinha. Precisei me afastar para saber como lidar com isso. Era estranho. Eu meio que sempre soube que eu tinha essa capacidade, mas nunca tinha entendido tanto o que podia fazer com isso. Nunca tinha entendido o que essa capacidade podia significar e me assustou quando vi aquela comoção. Precisei relembrar o que raios estou fazendo e por que estou fazendo. Precisei me perguntar mais uma vez se eu estou ok ao escolher ter essa responsabilidade, se é isso que quero pra mim mesma. E, depois de lembrar das minhas respostas para essas questões, precisei sentar comigo e me perguntar como seguir em frente de um jeito que faz sentido pra mim.
Foi por isso que fui fazer colagens.
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Eu tinha voltado a narrativizar minha vida antes do meu aniversário desse ano e eu sabia disso. Já estava há dois meses e meio mandando áudios diários pra Anna contando sobre a minha vida (e, por vida, quero dizer os acontecimentos, as reflexões e os sentimentos que tive). Eu já sabia, mas foi ali, deitada num puff verde largado na grama, sentindo frio apesar de estar de casaco, jaqueta e cobertor no verão, vendo um filme que já tinha visto rodeada de pessoas que eu não conhecia que consegui colocar em palavras para mim mesma. Esse momento é extremamente narrativizável.
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Eu só queria te contar.
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Já estava com a proposta de voltar a escrever poemas antes de cruzar o Atlântico. Projetos à parte, estava com saudades de escrever poemas. Passei uma boa fase da minha vida os escrevendo e esqueci um pouco deles quando caí mais a fundo na vida milituda e depois da cultura pop. Mas a real é que eu sempre gostei muito mais de poesia do que de prosa. Eu nem gosto de prosa. Me dá preguiça. Eu ia mal nas aulas de redação porque nunca terminava os exercícios. Eu ganhei o concurso literário da escola com um poema nonsense aos 11 anos e o menino que sentava atrás de mim ficou tão feliz que recitou pra sala inteiro enquanto todo mundo aplaudia. Eu perdi o concurso no ano seguinte porque escrevi um conto. Não sou boa em contos. Nem pra escrever nem pra ler. Acho chato. Menos o conto do ovo e da galinha, da Clarice. Aquilo só é l0k0. Eu e a ex do menino que eu gostava na escola concordamos com isso.
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Voltei a escrever poemas de uma maneira diferente do que escrevia. É claro-clara.
Antes, meus poemas eram menores. Mais engraçadinhos, mais marginais, mais heróis.
Meus poemas cresceram. Ainda têm sua graça, mas não são marginais ou heróis. Meus novos poemas são longos como não gosto de ler. Eles têm o tamanho que precisam. Ler e escrever são atividades diferentes, eu disse. Meus poemas novos são mais pessoais, mais específicos. Aprendi a fazer de memórias arte e literatura, mas não me engano: minha vida não é arte. Eu sou um conceito, eu sou uma narrativa que inventei pra mim mesma, mas não sou arte. Quando digo que sou é sempre ironia. Minhas colagens são ironia. Meus poemas também. Mas meus novos poemas têm mais. Eles também admitem uma divisão, uma separação, um paradoxo de ser e não ser, pertencer e não pertencer.
Paradoxo foi a primeira palavra difícil que aprendi. Sou e, não ou. Quero somar, crescer, expandir, ir além. É a minha forma de anarquia, a falta de fronteiras.
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Já chorei muito pras pessoas próximas dizendo que não aguento mais ser a pessoa que tem que criar espaços. Eu só queria uma vez na vida achar um espaço pra mim, ser a pessoa abraçada, não a que tem que abraçar os outros, eu disse e escrevi e gravei em áudio no zap.
Eu não tenho espaço. É assim que me sinto na maior parte do tempo, e às vezes é excelente, outras é horrível; é sempre ridículo porque é muito eu, é também Freud cuspido e escarrado (minha expressão modificada preferida da língua portuguesa, provavelmente). A maioria das minhas crises são sobre isso. Quem tá aqui há algum tempo sabe. Eu não tenho espaço, mas meus poemas são uma resposta pra mim mesma.
Eu não tenho espaço, eu sou o espaço.
Vocês, astronautas, viajam também por mim. Vocês, astronautas, são também espaço, pedacinhos de estrela e guaxinins mortos. Somos faíscas do universo.
Os átomos que compõem seu corpo são coisas antigas, reciclados por milhões de anos.
Você é feito/a de estrelas e também de guaxinins mortos.
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Outro dia, quem sabe, venho aqui falar de política (votem 13). Outro dia, quem sabe, conto os bastidores da minha história com o xodó e, também quem sabe, conto um pouco mais sobre minha demissexualidade. Ainda há de existir o dia que vou escrever uma newsletter sobre ser demi. Mas não sei quando. Queria estar mais socrática do que posso, queria saber que nada sei. Mas, infelizmente, a política não nos permite isso nesse momento.
Voltei da viagem querendo poder confundir mais e saber menos. Sempre me identifiquei com Tom Zé, afinal de contas. Mas às vezes as conversas não são sobre nuances, mas sobre pilares éticos. Decidi não subestimar vocês. Decidi que vou confiar que vocês conseguem diferenciar os pilares das nuances. Essa não é uma corrente de zap.
Uma das minhas leituras de tarot foi sobre como vou chegar no lugar que quero (outro dia, quem sabe, falo disso também) através da celebração, mas pra isso preciso me livrar de algumas coisas que me limitam. Não confiar que meus leitores vão me entender me limita profundamente. Eu cansei disso. Eu não preciso me explicar pra vocês. Vocês entendem.
Estamos conectados como tudo no espaço.
Estamos todos soltos no abismo.
O abismo é caos, mas é também vida, fascinante e assustadora. O fascínio é uma forma de se sentir assustado. A vida é uma forma de caos ao que temos que nos lançar.
Alguém me perguntou sobre como foi minha jornada niilista e essa é a melhor resposta que posso dar. Tudo no mundo é processo. Uma metáfora pra processo sempre foi viagem.
Nascer já é lançar-se ao abismo.
Mesmo deus, vivo ou morto, é também um viajante.
Eu não sei o que deus tem a ver com isso, mas não preciso saber. Isso é trabalho pra crítico literário.
Bjoks sem nenhuma revisão,
Clara.