Sally Rooney tropical & Zeca Pagodinho genderswap
🚀 Olá, astronautas! 🚀
Finalmente tirei férias. Foram só cinco dias e eu ainda tive que aparecer em uma aula on-line, mas nada como sair de São Paulo; eu tava enlouquecendo.
Nesses cinco dias de descanso, fui visitar um amigo que se mudou pra praia. Já falávamos de eu conhecer a casa dele desde que ele se mudou, no primeiro semestre, mas foi só quando ele me respondeu uma mensagem basicamente dizendo que estava prestes a ter um burnout que nós dois sentamos pra organizar nossas agendas e fazer isso acontecer. Você vai me aguentar por tanto tempo?, ele me perguntou como se fôssemos passar um mês juntos. Eu te aguento há 15 anos, respondi pra ele, mesmo sabendo que viajar junto é muito diferente de se encontrar pra uma cerveja no bar.
Os dias foram todos meio parecidos, mas foi um parecido muito diferente da minha vidinha cotidiana. Caminhamos pelas ruas de terra, fomos à praia nos dias nublados e garoentos, bebemos muita cerveja e conversamos sobre comunismo ao som de Miles Davis. Deitada na cama que ele fez ser sofá na sala da sua casa alugada, depois de discordarmos de muitos assuntos, disse ele: Eu gosto das nossas diferenças epistemológicas. Ele riu e deu mais um trago no cigarro.
*
Numa das noites, quando já estava com a porta fechada do que ali era meu quarto improvisado, peguei o novo da Sally Rooney pra ler um pouco antes de dormir. Sem um lápis perto e com preguiça de me levantar, dobrei a ponta de uma das páginas, um capítulo que começava assim:
Alice, você não acha que o problema do romance contemporâneo é simplesmente o problema da vida contemporânea? Concordo que parece vulgar, decadente, até violento no sentido epistêmico, investir energia nas banalidades do sexo e da amizade se a civilização humana está à beira do colapso. Mas, ao mesmo tempo, é isso o que eu faço todo dia. Podemos esperar, se você preferir, nossa ascensão a um plano superior de existência, momento em que começaremos a direcionar todos os nossos recursos mentais e materiais para questões existenciais e para pensar não nas nossas famílias, nos nossos amigos, amantes e por assim vai. Porém vamos ficar esperando, na minha opinião, por muito tempo e, na verdade vamos morrer antes que isso aconteça. Afinal, quando as pessoas estão no leito de morte, não falam sempre dos cônjuges e dos filhos? E a morte não é apenas o apocalipse em primeira pessoa?
Eu nem tava gostando tanto assim do livro, mas, de repente, me vi inteira naquelas palavras. Vi todas as conversas que tinha tido com meu amigo e, nos dias seguintes, quando assuntos do tipo continuaram, fiquei me perguntando: eu tô vivendo a minha vida ou apenas uma cena de um livro da Sally Rooney? Pra ser honesta, parece mais a segunda opção, mas você não acha que é o problema da vida contemporânea? Mesmo que o uso do termo "contemporâneo", pelo menos nas artes visuais, seja pra se referir a uma arte da segunda metade do século XX e já estamos na segunda década do século XXI?
Quando, já em São Paulo, li esse mesmo trecho pra Anna Vitória ao telefone, ela só deu um risinho: ai, a Sally Rooney, né?. Quando li esse mesmo trecho pra minha psicóloga, depois de me humilhar ao explicar a ela sobre o que se trata Pessoas Normais, ela disse: Uau, e então comentou que a Rooney realmente tinha tido a capacidade de colocar em palavras o que muita gente vive. Isso é genialidade, ela disse. Achei curioso.
*
O amigo que fui visitar não é o primeiro amigo que tenho à beira de um burnout. Também não acho que vá ser o último, por mais que esse pensamento me deixe triste. Já faz uns anos que minha mãe me disse que ficava surpresa com a quantidade de amigos meus que sofrem com algum tipo de doença psicológica, mas, na noite que voltei de viagem, ela disse que via isso como uma doença do sistema capitalista neoliberal que cobra a nossa geração muito mais do que a dela foi cobrada - e olha que ninguém aqui em casa leu A Sociedade do Cansaço (apesar de eu ser praticamente sugar baby do Byung-Chul Han, o qual odiaria saber que tem uma doida por aí se considerando sugar baby dele, mas ok, a nossa relação é assim mesmo).
Mas essa acaba sendo sempre a premissa e a conclusão: o problema é o capitalismo. Não importa com quem eu converse, tudo volta a isso, o capitalismo está nos destruindo, nos adoecendo, nos moendo. Poderia citar o Han, o J-Hope, qualquer amigue. É o único assunto que existe. Mas entre discussões sobre qual a melhor estratégia de combate ao sistema na sala daquela casa na praia, sempre voltávamos às relações. Os amigos, conhecidos, as pessoas com quem saímos, por quem um dia já nos apaixonamos.
Numa tarde no mercado, meu amigo me perguntou se eu pensava em um dia ter filhos e lembrei da vez que estava sentada na mesa do canto do restaurante de lámem com minhas amigas de infância e elas falavam sobre como seríamos quando fôssemos mães. Elas falavam assim: quando. Nesse almoço, lembrei da vez que saí pra jantar com a Anna Vitória e algumas amigas dela e todas falaram sobre gravidez de uma maneira tão fácil que fiquei assustada. É estranho pensar que nossos pais tiveram filhos com a nossa idade, é o que ouço de praticamente todes da minha idade, é o que já me peguei falando várias vezes também. Mas lembrando de tudo isso, acho curioso como esse assunto surge a cada ano que passa. As narrativas normativas que nossa sociedade capitalista monogâmica nos impõe são poderosas demais mesmo se até quem se recusa a ouvir pop e pagar um canal de streaming porque não quer contribuir com a grande indústria cultural me pergunta sobre um assunto desses bem ali no meio do atacadão.
*
Esse meu amigo é o mais próximo que tenho de um ex, mesmo que ele muito provavelmente não me considere da mesma maneira porque, diferente de mim, ele já namorou assim real oficial algumas pessoas. Ele é uma Pessoa Que Namora; disse isso a ele, mas ele não entendeu. Nenhuma Pessoa Que Namora entende, é meio engraçado.
A gente se conhece desde o Ensino Fundamental e tivemos muitos momentos de proximidade e distância na nossa história. Temos essa relação profundamente contemporânea - ou pós-contemporânea, se preferir - em que podemos ficar meses ou mesmo anos sem se falar e ainda assim somos amigos. Mesmo que eu não soubesse que ele teve uma cobra de estimação por anos e ele não soubesse que tive o cabelo pintado de rosa por um tempo. Essas coisas não parecem fazer tanta diferença porque, quando nos vemos, contamos de tudo que importa e, às vezes, o que não importa também. Esse ano, antes de eu visitá-lo, ele me mandou uma mensagem dizendo que precisava falar comigo. Quando nos ligamos, ele disse que queria conversar sobre os impactos das redes sociais nas relações intrapessoais. Eu não faço ideia do que aconteceu pro namoro dele terminar, mas sei de todos os detalhes da primeira vez que ele tomou ácido.
Essa dinâmica não é algo particular da nossa relação. Tenho muitos outros amigos que vejo uma, duas vezes por ano quando muito, e que tenho essa certeza profunda do amor e do carinho que temos um pelo outro. Não importa o quanto a gente mude, sei que a construção que temos é sólida. A pessoa nem precisa pedir desculpas pelo sumiço, não importa muito, eu simplesmente sei. E vice versa.
Isso não tira o esforço dessas relações, muito pelo contrário. Às vezes bate insegurança ou ansiedade. A gente não se fala há tanto tempo, será que tá tudo bem mesmo com a gente? Será que essa pessoa não me odeia? Mas isso é a falta de química em nosso cérebro. É a gente caindo em todas aquelas frases feitas que saem dizendo por aí. Amigo que é amigo [insira qualquer bobagem]. Amigo que é amigo é aquele que você considera amigo.
*
Das pessoas com quem estudei, poucas se mantiveram na minha vida. Sentada no quintal de casa conversando com uma delas, uma das minhas grandes amigas e provavelmente a pessoa com quem mais briguei e fiz as pazes, ela me disse que não sente que tem muitos amigos. Estávamos descalças, cada uma encolhida numa cadeira desconfortável. Ela me disse que sou a pessoa que ela conhece que tem mais amigos. A Anna Vitória me diz a mesma coisa. Outro dia, reclamei com a AV que não tenho amigos e ela me respondeu que, Clara, você fez amigos no mestrado no meio de uma pandemia. Não tem mais ninguém no mundo que fez amigos durante a pandemia. Claro que tem, retruquei, meus amigos! Meu jeitinho de fazer humor.
Mas no quintal de casa, essa amiga da época da escola falou: Eu não considero muita gente minha amiga. A ouvi com calma e a entendi. Mas também falei: Talvez seja uma questão do que você considerada amizade. Talvez, ela disse. Então falei que tenho muitos tipos de amigues, inclusive amigues que não gosto. Ela disse que isso era completamente insano e é um pouco mesmo, mas acontece.
*
Muita gente na internet me pergunta como se faz amigos e o que tenho pensado cada vez mais é que o que as pessoas realmente querem saber é como se mantém uma amizade. Porque, sejamos honestos, todo mundo sabe que a única forma de fazer amigos é chegando e puxando assunto com a pessoa que você tem interesse, mas ninguém sabe muito bem como levar isso adiante pra estabelecer uma relação mais profunda ou pelo menos estável de amizade.
Entendo a dificuldade. Nós não somos ensinados a se esforçar pelos nossos amigos. Durante os nossos primeiros 18 anos de vida, que é quando estamos formando a maioria das nossas habilidades, somos condicionados a fazer amizades com as pessoas que estão no nosso dia-a-dia, gente que passa o dia inteiro contigo afinal de contas, mas e depois? E quando vocês trabalham oito horas por dia, tá cada um num canto, vivendo experiências diferentes em ritmos diferentes?
Cada um processa o mundo de uma forma e, às vezes, a gente precisa se esforçar pra entender como outra pessoa o processa. A gente precisa se esforçar pra se interessar por isso. Porque é fácil pra mim ficar puta e brigar com o amigo que me disse que não vota porque "isso é contribuir com um sistema que só favorece o capital". E não é como se eu não tivesse dito a ele que a gente vive num sistema capitalista e, se for assim, dá pra usar essa desculpa pra tudo, então ou você engole isso e começa a criar uma estratégia de como sobreviver e ajudar as pessoas nas mais diferentes instâncias, ou então você vira o cara tonto de Na Natureza Selvagem. É claro que eu disse isso. E é claro que a gente passou um tempo discutindo. Mas também sei que as questões que ele tem relacionadas a classe são complexas e íntimas. São questões muito diferentes das que eu tenho quanto ao mesmo assunto e isso tem a ver com uma lente subjetiva que não cabe ao outro julgar, mas entender. E, então, conversar.
Acho que tudo sempre volta à CNV, meu amigo disse numa das noites em que estive na sua casa nesses últimos dias, e eu demorei alguns segundos até entender que ele tava falando de comunicação não-violenta. Pra ser honesta, não sou muito versada no assunto, mas a base é essa e é simples: entender o outro. Não se colocar no lugar do outro, mas simplesmente escutar o que a pessoa tá ali dizendo. Sem julgamentos. Levantando pra pegar uma cerveja, meu amigo me disse: Eu sei que não é bom, mas eu julgo muito os outros. Fiquei quieta. O trompete de Miles Davis ao fundo. Isso é a minha vida ou um romance da Sally Rooney? Brindamos o copo cheio novamente. Beber sem brindar dá azar, todo mundo sabe.
*
Acho curiosa essa dualidade que vivemos em que ouvimos que quem tem um amigo tem tudo ao mesmo tempo em que todas as outras relações são priorizadas antes dos amigos. A família vem primeiro. Tem que sacrificar certas coisas pelo relacionamento romântico. Precisa cuidar das suas relações profissionais. É necessário tirar um tempo pra si. Os amigos ficam esquecidos no churrasco. A gente fala que vai encontrar um tempo pros nossos amigos, mas a real é que isso não funciona, não é pra achar uma brecha pras amizades, mas sim criar esse espaço na sua vida.
Mas ninguém quer ceder por causa de uma amizade, não nos ensinam isso, que podemos ceder nessas situações também. Perdemos o amigo mas não perdemos a piada. E, ok, eu também faço isso de vez em quando, eu sustentei que o teatro tinha que acabar na mesa de almoço do primeiro dia de 2020 mesmo que todas as pessoas estivessem transtornadas comigo. Mas a amizade, assim como toda relação, exige um esforço. E a gente não tá acostumado a isso.
"Todo mundo" procura relacionamentos romântico-sexuais, é visto como natural e até mesmo fundamental essa busca ativa. Mas, do jeito que tratamos a amizade, parece que ela acontece por geração espontânea, e isso simplesmente não é verdade. Exige tempo, energia, atenção, vulnerabilidade. Exige carinho e compreensão. Exige que trabalhemos questões internas nossas assim como todas as outras relações. Não é fácil. Às vezes, precisa de DR também.
É trabalhoso lidar com as diferenças, as mudanças, com tudo que nos afasta e também o que nos aproxima. Às vezes, passa tanto tempo que você já não sabe mais direito o que contar ou o que perguntar. Às vezes, parece mais fácil só falar de banalidades, mas eu não sou uma pessoa que consegue falar de banalidade por tanto tempo assim. Eu não sei falar de séries sem falar de teoria sociológica assim como acho difícil falar dessas teorias sem falar de séries. Outro dia mesmo, conversando com uma nova amiga, me dei conta de que a bibliografia de base do caos que eu e Anna Vitória criamos é também a bibliografia de base da minha vida, da forma com que me relaciono com as pessoas.
Em partes, é bacana ver o quanto - e como - absorvo o que leio, assisto e ouço; mas é também cansativo dizer pela enésima vez sobre o que escreve o Han ou o que canta a Janelle Monáe. Sem contar que, dependendo da situação, pode soar um pouco pedante, mesmo que não seja nada disso. Mas, daí, quem é meu amigo sabe. Mesmo que muitas vezes me digam que é difícil entender quando tô falando sério e quando não tô.
Na mesa de almoço no último ano novo pré-pandêmico, criei mesmo uma discussão grande porque disse que o teatro tem que acabar e teve gente que ficou consternada de verdade, só duas pessoas entenderam a ironia ou pós-ironia do que eu estava dizendo. Acontece com frequência. Ainda na estrada indo pra praia, disse a mesma coisa sobre teatro pro meu amigo e ele não ficou convencido, nem depois que tentei explicar. Três noites depois, ele já tava rindo dizendo que a universidade tem que acabar. Brindamos ao fim de muitas coisas.
*
Amizade dá trabalho. Falo disso com a Anna Vitória o tempo inteiro. Às vezes, é nas coisas mais simples, como abrir espaço na nossa agenda pra nos telefonarmos durante nossos almoços um vez por semana. Às vezes, é bem mais complicado que isso.
Existe um trabalho emocional consigo e com o outro. Entender o que você pode dar e o que a outra pessoa precisa, às vezes é difícil, às vezes você tá surtando e sua melhor amiga também mas você precisa engolir ali seu surto porque ela precisa mais ou você precisa pedir pra que ela esteja ali por você mesmo sabendo o quanto ela tá fragilizada. Existe o trabalho emocional de saber pedir e o trabalho emocional de ouvir um sim ou um não. Existe o trabalho emocional de saber doar e o trabalho emocional de dizer um sim ou um não.
Precisa de comunicação. Amiga, você pode falar? Tá tranquilo se não der. Amiga, eu não tô bem, preciso falar contigo. Tem horas que a gente cancela planos por amigues, tem horas que a gente pede pras amigues cancelarem planos por nós. Na alegria e na tristeza, nos dias sem muita graça também. Você quer desabafar ou se distrair? Comunicação é tudo, mesmo quando você tá estudando análise do discurso e já tá doida porque o que raios são palavras e como é possível haver sentido e entendimento em sons se não existe sentido intrínseco a nada? Mas aí, talvez, já seja uma questão porque sou discursista.
*
Minhas amigas falam muito. Eu também. E todas nós assumimos que as pessoas sabem conversar. Ou seja: se eu digo uma coisa, você diz outra coisa. Não assumo que preciso perguntar E Você? pra alguém me contar de si. Se a pessoa pergunta de mim e eu respondo, assumo que o passo seguinte vá ser a resposta dela à mesma questão, ou uma comparação entre a minha resposta e a que ela tem; a terceira opção é algo do que falei fazê-la pensar em algo que ela vai me contar a seguir.
Pra mim, é estranho quando pessoas não conversam assim. Acho esquisito ter que ativamente perguntar E Você? como se a pessoa não presumisse meu interesse por ela, como se eu não quisesse saber o que ela está pensando. Me parece forçado ter que perguntar E Você?. Não é óbvio que tenho interesse? E, se não é, você não devia se impor de qualquer forma?
Em meio às nossas conversas regadas à cerveja e vinho, tinha momentos que meu amigo simplesmente parava de falar. Eu esperava um pouco, mas ele continuava em silêncio. Ele fala bastante, na verdade, mas de repente ele fica quieto pensando. No meio de uma discussão sobre gênero, classe, música, anarquia anti-capitalista, fosse o que fosse. De repente, ele aquietava. Tudo que dava pra ouvir era a música ao fundo e os sapos coaxando em algum lugar do lado de fora. Pensa em voz alta, falei pro meu amigo inúmeras vezes e ele assim o fez toda vez.
*
Enquanto meu amigo dirigia para irmos à praia, eu me desconcentrava olhando a cidade e pensando como ela é feia. Os muros cinzas, a tintura manchada, a falta completa de planejamento. Pensava: Alguém tem que escrever sobre isso. Não a feiúra da cidade necessariamente, mas essa nossa vidinha que inclui também a cidade feia.
A sensação engraçadinha de estar no banco do carona do carro de alguém que você conheceu com 12 anos e que sempre odiou carros. Da primeira vez que sua amiga te deu carona pra vocês irem ao cinema no shopping e ela não conseguia estacionar o carro, então você saiu andando pela garagem até encontrar alguém com cara de confiável com generosidade o suficiente pra estacionar o carro pra ela. De escrever um livro enquanto a pessoa que você beijou dez anos antes aprende a tocar pandeiro ao seu lado. De voltar à casa da avó da sua melhor amiga de infância e tudo ser exatamente igual ao que você lembrava mas tudo em outra perspectiva de tamanho.
Alguém precisa escrever sobre isso, eu pensei a minha vida toda. E fui guardando esses momentos. O apartamento vendido, o arrastão no sábado, as conversas em pedaços de papel rasgados e em prints perdidos na nuvem, as ruas com cheiro de mijo, os pixos de veracidade. As conversas sobre estratégias de resistência, implicações do comunismo, a reprodução da monogamia dentro das comunidades LGBTQIA+, a importância da educação de história e como a mudança de narrativas históricas impacta a forma com que lidamos com o mundo, análises de estruturas do neoliberalismo e mecanismos de raça em situações de microviolências, ou simplesmente como é impressionante que estadunidense é burro.
Fui guardando as relações fragmentadas, os amores platônicos, as competições veladas, o amor gasto, a angústia de crescer e se afastar, a estranheza de se reaproximar, as falas e os silêncios, a mudança de sentar no chão do quarto para sentar no sofá da sala, os abraços em grupo, a sensação da caneta bic da amiga que senta atrás de você na sala da escola percorrendo a pele do seu braço em um desenho que você não sabe qual será.
Uma amiga uma vez me disse: Você não é minha melhor amiga, porque não acredito que exista isso de um melhor amigo, mas você é minha amiga mais completa. Há muito que deixamos de ser as amigas mais completas uma da outra e foi difícil e às vezes um pouco ridículo, mas o nosso amor continua. E mesmo quando estava tudo esquisito, eu voltava a essa fala dela. Na época, fez muito sentido, porque eu também nunca acreditei nessa melhores amigues. Mas hoje em dia tampouco sei se é uma questão de completude. No fundo, acho que só não temos vocabulário o suficiente pra falar de amizades. Menos ainda do que temos pra falar de relações romântico-sexuais. Talvez seja uma questão do que você considerada amizade.
E enquanto via a cidade feia dentro do carro de meu amigo, me repetia: Alguém tem que escrever sobre isso. Ao mesmo tempo, tudo que eu pensava em escrever parecia que a Sally Rooney já tinha feito. O problema do romance contemporâneo não é simplesmente o problema da vida contemporânea?
Mas você às vezes vivencia uma versão diluída, personalizada, dessa sensação, como se a sua própria vida, seu próprio mundo, aos poucos mas perceptivelmente tivesse se tornado um lugar mais feio? Ou não tem sequer a sensação de que, embora antes você estivesse sincronizada com o discurso cultural, você já não está mais, e agora se sente à deriva em relação ao mundo das ideias, alienada, sem lar intelectual? Talvez tenha a ver especificamente com o nosso momento histórico, ou talvez apenas com envelhecer e se sentir desiludido, e aconteça com todo mundo. Pensando em como éramos ao nos conhecermos, acho que não estávamos erradas quanto a nada, a não ser nós mesmas. As ideias eram corretas, mas o erro foi acharmos que tínhamos importância. [...] Quando éramos novas, achávamos que nossas responsabilidades abarcavam a Terra e tudo o que vivia nela. E agora precisamos nos contentar em tentar não decepcionar as pessoas que amamos, tentando não usar plástico demais, e no seu caso tentando escrever um livro interessante de tantos em tantos anos. Até agora, tudo bem nesse quesito.
*
Na última noite das minhas férias na praia perguntei a meu amigo se podia ler o começo do livro que venho escrevendo faz um ano e meio, ele disse que sim. - Você lembra quando era 2012 e a gente pensava que o mundo ia acabar?
Li oito parágrafos a ele. Os oito parágrafos que leio às pessoas que importam. Quando terminei, ele disse: Eu ouviria muito mais. Eu sorri. Eu vou comprar seu livro quando ele sair, ele disse. Eu ri. Uns dias depois, perguntei à Anna Vitória se é possível escrever um livro sobre os nossos tempos que não seja a Sally Rooney. Amiga, é o seu livro, ela me respondeu.
Há anos tento trabalhar questões da nossa vida aqui, debaixo do Cruzeiro do Sul, nesse nosso apocalipse. Em um poema, escrevi:
Eu nunca soube descrever
nada
Eu nunca soube como contar
como é estar aqui
Tudo que sempre soube é ser
aqui
*
Talvez seja essa a nossa condição pós-contemporânea. Entre um apocalipse e outro, pensar nas nossas relações, nossos laços emocionais e sentimentais - eu nem sei direito a diferença entre emoção e sentimento. Mas entre as conversas sobre o sentido ou falta de sentido da vida, aparecem as fofocas e as histórias que guardamos pra contar àquela pessoa. E quando a Livia de repente fala sobre a União Soviética, quando a Sofia me conta sobre algo de teoria queer que ela leu ou a Anna Vitória elabora sobre violências de gênero (etc.), eu sempre as interrompo pra dizer: Eu te amo. E elas sempre riem e dizem que me amam também. Elas me interrompem igual.
E, ok, existe um lado meu que é um pouco Sally Rooney tropical nessas reflexões. Ou talvez um Zeca Pagodinho genderswap que elabora demais os sentimentos que tem quanto a todas as suas amizades. Mas o que venho pensando cada vez mais é que tudo surge daí: das relações. Eu e você; eu, você e nosses amigues; eu, você, nosses amigues e sus amigues. De amigue em amigue, conhecide a conhecide, parente a parente. Isso vai formando as nossas comunidades, a nossa sociedade. Tenho me perguntado muito: No fim das contas, não é isso o comunismo? Um monte de gente com os mesmos direitos garantidos se relacionando sem hierarquias? Exige esforço, dá trabalho. Mas, se é isso - e eu não sei se é, mas se for, qual é a diferença entre falar de comunismo e falar das nossas relações?
da série Desejos Medievais, pra ver mais: @brownebrownie
Beijoks,
Clara