Lado de fora, lado de dentro
🚀 Olá, astronautas! 🚀
A vida tem me parecido dividida entre o lado de fora e o lado de dentro.Â
Lá, onde não posso tocar, as coisas acontecem demais. A vida passa rápido, as notÃcias pesam no coração, tudo cansa, tudo emputece. Lá, pega fogo. Eu queria que pegasse mais ainda, eu queria contribuir com chamas e explosões, mas não sei como fazer isso e proteger outras pessoas, vidas que importam.
Cá, onde não se pode chegar, as coisas nunca acontecem. A vida não passa, o tempo foi suspenso, tenho chamado de dia da marmota por causa daquele filme. Tudo é tédio e impaciência, a busca eterna por um equilÃbrio que nos obrigamos a acreditar que é possÃvel, mesmo que no fundo saibamos que não é bem assim que o mundo acontece.
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Sair já foi bom. Foi limpar a mente, ver a vida. Hoje, só me estressa. Sei que preciso sair um pouco, caminhar, ver um pedacinho do mundo, permanecer conectada, faz parte de manter saúde fÃsica e mental. Mas não consigo mais relaxar quando caminho. De repente, me vejo estressada, resmungona, sem achar uma coisa boa. Não gosto da pessoa que sou quando estou do lado de fora. Não nesses tempos.
Vai passar, eu sei, eu me obrigo a saber, a lembrar. Mas isso não muda tanto as coisas assim.
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Tenho pensado muito, mas não sei sobre o quê. Não consigo lembrar. Termino o dia cansada. Lembro do ato de pensar, mas sobre o que pensei? Eu não sei.
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Meus pensamentos se repetem ou se desenvolvem? Eu não sei.
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 lado de dentro podia ser muito pior. Isso também faz parte da divisão da vida. O lado de fora é horrÃvel, mas consigo encontrar coisas boas no lado de dentro. Digo que não é tão ruim assim pra não dizer que, à s vezes, é confortável, tem seus momentos gostosos. Mas guardo isso como segredo. Porque sei como é o lado de fora, sei que o meu lado de dentro não é como outros. E tenho raiva, ódio, juro a mim mesma que, quando o perigo for só aquele visÃvel, eu vou também incendiar as ruas e palácios.Â
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Não sei o que fazer. Ninguém ajuda. Talvez não haja ajuda.
Dizem pra ler, escutar, assistir, ecoar.
Mas fica esse pensamento martelando na minha cabeça: não basta. É preciso mais e eu não sei o que isso significa. Enquanto isso, faço o que me dizem e posso fazer. Mas essa voz dentro da minha cabeça não para, não diminui o volume.Â
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 Tenho saudades de muitas coisas. Não sei do que sinto falta.
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Algumas músicas ecoam:
me deixa caminhar ao vento
um inferno fora daqui
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Do lado de fora, um dia dura milênios. É tanta coisa.
Do lado de dentro, o dia já acabou. É tão pouco.
Os tempos se misturam. Não existe mais rápido e devagar. Não existe passado, presente ou futuro.
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É isso a eternidade? É assim que os deuses sentem o tempo?Â
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Eu queria ter certezas, mas isso também é mentira. A dúvida me movimenta, me faz agir. Mesmo quando ela me paralisa. É uma paralisia diferente das certezas, não é estática. Me movimento.
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É estranho fazer aula de dança no meu quarto. É estranho não atravessar o viaduto a pé.
Minhas saudades são tão paulistas: o metrô, os prédios feios, o milho da saÃda da estação, um lanche na padaria.
Sinto falta de mergulhar no mar, de sentir a grama nos meus pés descalças, de ver o horizonte.Â
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Minha mãe começou com o jogo: você pode explodir 3 prédios, quais cê escolheria?
Eu escolheria os que impedem de ver o horizonte daqui de casa. E fico em dúvida entre o Palácio do Planalto e o condomÃnio Vivendas da Barra. Onde quer que mais membros do clã estiverem.
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Outro dia falei que queria ter uma sniper na minha janela pra matar todo mundo que não tá de máscara na rua. Minha mãe riu aquelas risadas que não são bem de graça, mas de sentimentos que não sabemos ao certo nominar: "a gente tá tão violenta".
Disse a ela que me sinto o meme da galinha com o machado: paz nunca foi uma opção.Â
Ao telefone com uma amiga minha, rimos disso toda vez. "Em 2013, tinha aquele movimento 'sem violência', vamos começar agora outro movimento: o com violência."
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Agora, falo ao telefone. Nem me gera mais ansiedade. Ele toca, eu atendo. Prefiro assim. As telas me doem os olhos, distraem do principal: a conversa.Â
Rio com minhas amigas enquanto desenho plantas e formas abstratas. Fofocamos sobre pessoas que não conhecemos, eu passei mais de meia hora falando sobre um trisal de um dorama que assisti, damos risada de piadas do tuÃter, não temos assunto. Pensei em algo que guardei pra falar quando estivéssemos ao telefone, mas agora já esqueci. A vida tá chata, tá empobrecida, só temos as paredes e o pouco da janela. A prefeitura cortou os galhos da árvore daqui de frente de casa, vai crescer, eu sei, mas sinto falta dos passarinhos e micos. Já preenchi dois cadernos inteiros nesses últimos três meses. A natureza tá se curando, mas a gente também devia ser natureza.
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As noites têm mais estrelas, a mexeriqueira fica dourada no fim do dia. Se eu olhar ao sul, vejo as cores de tudo florescendo em pleno outono. Faltam poucos dias pro inverno. Semana que vem, a previsão é de 27 °C. Todo dia é o mesmo dia. Nunca se sabe o que vai acontecer.Â
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Não existe nada a contar. Não quero mais saber do que acontece do lado de fora, não aguento mais. Isso também é mentira. Eu aguento. A gente sempre aguenta mais, se faz aguentar, é a única saÃda e ela é possÃvel. Não quer dizer que eu goste, que eu não evite. Não quero mais saber, tudo acontece demais do lado de fora. Aqui dentro, nada. Não existe nada a contar.
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Ainda assim, eu penso. Existo? Também. Existo mais que penso. Ainda assim, eu penso. Não consigo lembrar sobre o quê, mas termino o dia cansada, lembro do ato de pensar, pensar, pensar, eu juro que penso, mesmo que não saiba reproduzir o pensamento, mesmo que não saiba sobre o que ele é. Às vezes, é desesperador, à s vezes só não tem graça.Â
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Tenho lido muito ou pouco, já não sei. Queria falar mais sobre o que tenho lido, a forma com que tenho lido, mas não lembro o que penso sobre o assunto. Não lembro nem o que escrevi alguns parágrafos antes aqui.Â
Não sei muito bem o que fazer. Sigo metaforicamente em frente. Continuo em casa.
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Já me organizei, me desorganizei, me motivei, me desmotivei, fiz bolo. Vidas inteiras se passaram dentro do meu quarto, no quintal de casa. Minha pele já passou por todas as fases possÃveis, meu sono é um mistério, até voltei a escutar Chico Buarque, agora caà no buraco de Epik High.
Escrevi no diário, parei com o diário, voltei mais uma vez. Escrevi: "Não sei como vai ser agora. Acho que sinto falta de ser eu. Falta risada, criatividade, atenção. Tenho estado tão dispersiva que nem sei."
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Queria ter algo a dizer, não tenho. Escrevo mesmo assim. Envio essa newsletter mesmo assim.
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Outro dia, encontrei um desenho meu do primeiro semestre de 2016 que dizia as palavras do Clube da Esquina: nada será como antes.
Antes do impeachment, do golpe, do abismo, do caos. Queria ter falado sobre isso, mas não consegui. Não conseguia lembrar o que queria dizer, ainda não consigo muito bem.Â
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Às vezes me perguntou quanto tempo falta ou como vai ser depois, mas é raro. Cada vez mais esqueço do tempo, não quero esquecer da vida. Costumo pensar em outras coisas, não sei o quê. Mas ficam os resquÃcios da ação, a vontade de comunicar, as conexões de sinapses ou pessoas. Não sei, não sei.
Beijoks sem qualquer revisão e se mantenham seguros,
Clara
Â