🚀 Olá, astronautas! 🚀
Hoje, dia 31 de agosto de 2023, quinta-feira, quando (planejo que) você me lê, faço 29 anos e, surpreendendo absolutamente ninguém além de mim mesma, essa data tem me feito pensar coisas que ainda não tenho linguagem para traduzir pra fora de mim. É o retorno de Saturno. Ele finalmente chegou, no limite da data prevista, preguiçoso e procrastinador, mas entregando tudo direitinho no prazo, como eu mesma faço. Vi muitas amigas passarem por ele. Durante suas crises – todas diferentes, mas também as mesmas –, eu estranhava essa angústia tão profunda com a vida, não entendia a importância das datas, achava quase demodê se assustar com os 30 anos. Meu pai, querendo justificar não se importar com grandes festas de aniversário, sempre diz que as datas redondas só são importantes porque temos dez dedos nas mãos. E por mais que eu sempre revire os olhos quando ele fala isso, parte de mim pensava bem quietinha o mesmo quando via minhas amigas em crise. Daí chegou a minha vez.
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Não estou em crise. Não tô desesperada, angustiada, me sentindo sem amparo nem nada do tipo. Não tô repensando tudo que fiz até agora, não duvido ou me arrependo das minhas escolhas. Ao mesmo tempo, percebo o quanto tudo mudou, o quanto mudei.
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Fiz 27 anos em 2021. Foi o ano em que minha mãe teve câncer, que deixamos a casa onde moramos quase que minha vida toda, que mudamos de São Paulo, a maior cidade da América Latina, pra nos emburacarmos no meio do mato. Passei o primeiro semestre de 2022 estonteada pela natureza ao meu redor. Aprendendo a viver com ela, sê-la. Na consulta em que fui diagnosticada com quadro depressivo, meu psiquiatra disse que nunca tinha escutado alguém descrever tão bem o que é a solidão no sentido psicanalítico e isso me deixou feliz. Minhas amigas riram de eu ficar contente e ler como elogio alguém que basicamente me disse: parabéns, você está triste. Ri com elas também, essa história é um pouco o cúmulo de mim mesma, pra ser sincera, mas essa era uma fase em que as palavras e a descrição do mundo estavam sendo mais importantes do que o meu normal.
No dia do meu aniversário de 28 anos, comecei a morar sozinha oficialmente. Meus pais passaram a semana comigo organizando a casa nova, um apartamento. Mal lembrava como era morar num apartamento. Eles me ajudaram a desempacotar e organizar tudo em seu novo devido lugar. Dia 31 de agosto de 2022, minha casa estava toda montada e, depois do almoço e de muitos abraços, eles pegaram o carro e voltaram pro meio do mato. Eu fiquei na cidade. Entrei em casa e desenhei uma carinha sorridente no alto de cada batente de porta. A cada um que desenhava, dava um beijo na minha mão e depois tocava o smile, como se transferindo aquele amor. Para o objeto, para casa, para todas as entradas e saídas daquele espaço que agora era (e segue sendo) meu. Não é tão diferente do que faço toda vez que entro no mar, saudando e pedindo licença pra Iemanjá. A felicidade é a minha espiritualidade.
Então, passou mais um ano.
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Em algum momento desse ano, comecei a voltar a me perguntar quem sou eu. Essa foi a pergunta que mais rondou minha cabeça na vida e já faz uns bons anos que me senti resolvida quanto a isso, mas um dia, de repente não mais que de repente, ela voltou. Mas a parte curiosa é que, dessa vez, a pergunta me pareceu inútil. Ou, talvez, tenha sido a resposta. Porque me dei conta de que tenho muita certeza de quem sou – tanta certeza de que responder a pergunta não fazia sentido. Mas ela seguia rondando minha cabeça e me dei conta de que não tinha palavras para formular uma resposta. Mesmo que soubesse, e sei.
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Nunca na minha vida não tive palavras. Mesmo quando não as conhecia, a busca pelas palavras – que é a busca pelo sentido, pela afirmação da existência – sempre caminhou pela linguagem. Sons, imagens, até que, finalmente, palavras. Nas minhas sessões de análise com minha antiga psicanalista, debatíamos muito os termos que usávamos. Muitas vezes ela me sugeria uma palavra que eu recusava e explicava porque não ela, explorava as conotações semânticas que faziam ou perdiam o sentido pra mim, até que encontrávamos uma nova palavra que concordávamos resumir a questão. Essa não era uma prática só dos momentos de análise. Ainda me pego discutindo com amigues na mesa de bar, em reuniões com a minha orientadora, com minha família na mesa do almoço – sempre existe uma palavra, uma frase. Sempre existe um poema, um quadro, uma estátua, uma música, uma cena de um filme, um momento de passagem num dia como hoje que ficou contigo e que explica, resume, aponta, demonstra- que é. E a gente fala assim: é aquela coisa.
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Só que, agora, não é nada.
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Sou eu.
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Já não encontro palavras, imagens, sons pra mim mesma. Mas também não me interessa encontrar. Ou melhor, até me interessa, mas não preciso disso. Não sinto a angústia da busca, muito menos a urgência da resposta.
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Durante o primeiro semestre desse ano, tentei por teimosia de um exercício mental tradutológico encontrar palavras, imagens e sons que me definissem ou que fossem parte fundamental do que considero eu. Minha formação, minha educação, minha estrutura mais básica. Tanto no meu diário quanto no meu caderno da pós, têm listas e mais listas com nomes de filmes, álbuns, quadros, pessoas. Descrevi cenas inteiras com os mínimos detalhes sensoriais. Tentei me esforçar, escolher, tentei deixar fluir a partir da minha memória (ilha de edição). Como cria da internet e revistas de moda e comportamento, queria chegar no meu aniversário de 29 anos e escrever as 29 coisas que-… que o quê? Que aprendi? Vivi? Sou?
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Fiquei mordida com Indigo, do RM. O Namjoon (RM) calculou mal, mas calculou o lançamento do álbum para quando ele virasse 30. É toda uma história engraçada, porque a contagem dos anos na Coréia do Sul é diferente da nossa, mas eles mudaram pra uma outra contagem e todo conceito do Namjoon se atrapalhou e, pra ser honesta, acho que nem ele sabe direito quantos anos tem mais. Ele é um virginiano caótico de 1994 que nem eu. E ele chamou Indigo do último arquivo de seus 20 anos. No vinil do álbum, vem escrito: Record of RM : Indigo | From the colors of nature, human, etc. || Documentation of my youth in the moment of independent phase. An honest, unadorned record with shades.
Era isso que eu queria fazer.
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Tem muito que gosto nessas poucas frases do Namjoon, muito com o que me identifico. Gosto de como ele põe tudo no mesmo saco: natureza, humanos, etc. Como alguém que tem se sentido cada vez mais natureza, me sinto contemplada. Penso que ele, virginiano, deve se sentir como eu: um serzinho vivo crescendo em meio à natureza (vida) estonteante. Ele diz: 오늘을 살아 잡초처럼, que, na tradução em inglês é live like weeds, mas olha em português: viva como erva daninha. Como um dos meus emojis preferidos: 🌿. Não é um brotinho novo bebê, mas tá longe de ser um belo jequitibá ancião. Uma plantinha que cresce aos poucos, muda conforme as estações, se espalha com o vento e espera a chuva cair. Uma plantinha como tantas outras plantinhas. (Ainda não sei como me sinto quanto a isso.)
Gosto que ele fala que são 10 blues inclusos e nenhuma música é um Blues. Gosto da tentativa de faltas de adorno, de admitir: tem sombras aqui. Gosto que o álbum começa referenciando Platão. Gosto que ele se contradiz o tempo inteiro, que uma das músicas ele canta com a voz de ressaca, que esse é o último arquivo que ele tem dos seus 20 anos. Gosto que é uma bagunça tão grande que ele nem conseguiu acertar na idade.
Mas o que mais gosto, o que mais me pega, é que o álbum não é sobre a humanidade e a natureza (mesma coisa). Ele deixa claro: é das cores de etc.
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As cores me perseguem na mesma medida que eu as persigo. Aqui, entra a voz do Itamar Assumpção: Bonita a palavra perseguir, perseguir/ Em tudo que a sua etimologia sugere, confessa. Procurei no dicionário:
PERSEGUIR [verbo transitivo]: 1. ir no encalço de; 2. seguir ou procurar alguém por toda a parte com frequência, insistência e falta de oportunidade; acossar, importunar; 3. procurar fazer mal a alguém; tratar com violência ou agressividade; atormentar, fustigar, molestar; 4. procurar ou incomodar com insistência; fatigar, importunar; 5. agir ou lutar para conseguir algo. X ORIGEM ETIMOLÓGICA: latim vulgar persequo, -ere, do latim persequor, -qui, seguir sem cessar, seguir até atingir, percorrer, reclamar, reivindicar.
Anotei no meu caderno.
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Voltei a fazer uma coisa que fazia na adolescência: anotar citações. Antes, eu as escrevia na porta do meu quarto, como se aquelas frases fossem a entrada pro meu mundo, pra quem eu era. Depois, passei para uma caixa onde guardei todas as minhas memórias – ingressos de cinema, pulseiras de shows, cadernos, cartas, guardanapos desenhados; o verdadeiro arquivo da minha adolescência e início da juventude. Quando terminei de preencher a caixa toda, acabei com isso de guardar citações. Quer dizer, sublinho as partes que gosto nos meus livros, mas nunca mais as tirei 100% de contexto. Até esse ano.
Depois de quase uma semana com os mesmos versos da Taylor Swift na cabeça, percebi que a única maneira de tirá-los de mim era sentando e escrevendo à mão. Então, peguei um caderno mal começado e escrevi uma, duas, três estrofes. Comecei a escrever outros versos de outras pessoas que achei que se relacionavam. Então, imprimi e colei algumas obras de arte que gosto. Quando vi, era isso: agora tenho um caderno de citações que mistura Taylor Swift, Kawabata, Louise Bourgeois e uns memes de gambá.
Pensei: isso talvez seja uma boa explicação de quem sou. Ou, bem, não é uma boa explicação porque não explica nada, mas considero uma palhinha de algo meu.
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Poucas coisas considero minhas. Costumo gostar de compartilhar, as coisas que são nossas costumam me emocionar mais. Talvez, o que seja mais meu é a mistura que faço de tudo que é nosso, como isso se mistura dentro de mim.
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Finalmente descobri meu gosto literário e ele se resume em livros com finais vertiginosos. Pense: Cem Anos de Solidão, A Paixão Segundo G. H., Terra Sonâmbula, Todos os Homens São Mortais, Orlando, Beleza e Tristeza, e assim por diante. Existe algo muito específico nos finais desses livros que causa a vertigem ao lê-los. É a mistura, a confusão, a memória, o caos. É quando vidas inteiras se embaralham a ponto de se perder o sentido. E, na perda de sentido (controle), algo novo é gerado. Novas conexões são criadas, a vida se refaz, a ficção (organização, logo, sentido, logo, controle) acaba. Sobra a vida. Sobro eu, finalmente olhando pra cima, vendo a janela da minha casa sem ainda conseguir perceber nada material, esperando a mente acalmar pouco a pouco. Estou me acostumando com a realidade.
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Na minha tentativa de organizar (dar sentido) (controlar) quem sou nesses meus 29 anos, fiz uma lista chamada 29 29 coisas aos 29, em que me propus a fazer 29 listas daqueles 29 itens da Lista Zero. Filmes, livros, séries, poemas, álbuns, lugares, pessoas, objetos, momentos, cheiros, plantas, motivos pra ter chorado, frases de efeito insanas. Terminei muito a contragosto a primeira, não segui adiante.
Depois de tantas brincadeiras que não me divertiram, cheguei à conclusão de que a minha crise não é com quem sou, o que faço, com quem me relaciono ou o que vai acontecer. Minha crise é com os limites da linguagem. E eu até elaboraria mais sobre o assunto, mas a verdade é que ainda não sei traduzi-lo para algo além de sentimentos. Não tenho palavras, sons, imagens. Mas vejo a evolução do meu estonteamento com a vida quando estava no meio do mato, sem saber pra onde apontar, mexendo os braços caoticamente querendo mostrar tudo, perguntando: Como eu falo disso?! Como falo disso sem ser simbolista?!.
Durante esse um ano vivendo de idas e voltas entre o mato e a cidade, me dei conta de que o que eu queria era capturar a vida. Mas a vida não se captura, não se arquiva. Ela simplesmente É. O movimento é eterno (natureza).
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Minha pergunta agora é: como traduzo isso? Como transformo em linguagem o que É?
Sei que é possível. Vejo, leio e ouço outres o fazendo. Mas quero participar também, quero entrar na brincadeira. Já entrei nela há muito tempo. Essa newsletter, aos poucos, se tornou também um arquivo de algumas das minhas traduções.
Ao completar meus 29 anos, começo minha trigésima volta em torno do sol. E a gente ainda vai conversar muito sobre ele, porque, assim como tudo no mundo, ele é parte fundamental dessa coisa magistral que tenho perseguido, a vida.
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Feliz aniversário pra mim! 🎉
Bjoks,
Clara
Feliz aniversário, clara!!
Que lindo, Clara, parabéns, feliz aniversário!!! ♡