Crie a utopia
🚀 Olá, astronautas! 🚀
Revejo as cartas de tarô pra me certificar de que tudo já estava previsto. Nas anotações mal feitas do meu caderno, posso encontrar as pistas, as espadas e os ouros, as respostas incompletas na minha letra corrida. Não lembro de tudo de cabeça, me fixo em apenas uma carta, é sempre ela, o que não fazer. E todo ano, mesmo sabendo que o tarô é mais sábio que eu, não o escuto. E busco o que ele diz pra eu esquecer. Todo ano é diferente; ano novo, carta nova. Todo ano, eu teimo mesmo assim.
*
Pra ser honesta, nunca acreditei de verdade que o futuro poderia ser previsto. Ainda não acredito. Mas sou brasileira, ninguém aqui é ateu como nas terras frias. Somos atravessados por muito mais do que esse iluminismo racional; temos o corpo queimado da luz do sol, a gente ondula feito o mar, podem ter nos feito temer o diabo, mas faz muito mais de 500 anos que negociamos com todos os deuses. Feche os olhos, você também sente essa energia, mesmo que tenha outro nome pra isso. Respira fundo, você também tem a sua conexão. Com as pessoas ao seu redor, sua história, nosso passado, consigo, com o futuro que inventamos, a imaginação que vai muito além dos sonhos que nos ensinaram.
*
Tenho pensado muito sobre isso, os sonhos. Não é uma questão de agora, mas tenho a desenvolvido de pouquinho em pouquinho na minha cabeça.
Certas coisas pedem mais urgência, é preciso sobreviver, a vida é feita de dia-a-dia. Mas no fundo da minha mente tem sempre essa falta, esse buraco, pelo que estamos lutando? Precisa ter algo além, a gente precisa pensar no que queremos pra além da sobrevivência. O cotidiano atropela, eu já não escuto mais o silêncio, a cidade me tomou o horizonte.
E o horizonte nos faz caminhar e caminhar e caminhar mas estou parada, meus dedões inflamaram, meu pé tá tão seco que tá rachado. Sinto falta das falésias, das ondas, do vento ventando e mudando tudo por onde passa. Preciso de vida, horizonte, descanso pros olhos, ouvidos, corpo, já não consigo mais relaxar, tô sempre tensionada, outro dia senti os músculos do meu rosto doerem porque sorri por muito tempo e fazia tempo que isso não acontecia. Esse é o pior ano da minha vida, me pego pensando, mas daí me pergunto se é mesmo, se vai ser tão traumatizante quanto 1999, mesmo que eu nem lembre de 1999, mas será que vou lembrar disso? Porque não sei, já esqueci, já esqueci de muita coisa, não consigo lembrar. Tudo é névoa distante e ainda não enxergo o horizonte.
*
Quando The Good Place terminou, no começo de 2020, quando ainda havia vida, algo me incomodou, mas não sabia exatamente o que era. Ano passado ou esse ano, já não sei, mas depois de muitas décadas, decidi rever a série toda e entendi onde estava minha decepção. A falta de visão.
Conseguiram fazer um lugar em que não era necessário pensar na sobrevivência. Pralém da questão de que eles já estavam mortos, a vida que tinham no pós-vida era basicamente o sonho comunista: casa, comida, boa vida. Nem é pedir tanto assim. Segurança e direitos garantidos à toda população. Já imaginou? Não se preocupar se vai conseguir viver e se satisfazer pelo resto da vida, já tá tudo garantido. O teto, o alimento, o transporte, a educação, a água, a luz, os remédios, os cuidados, tudo. O trabalho não ser pela sua sobrevivência, mas pelo bem-estar da sua comunidade, não ter que produzir a mais, basta o suficiente. Olha o tempo livre que a gente teria, olha o espaço mental que nos abriria. Você consegue imaginar?
Eu não consigo. Não plenamente. E eu queria poder ver em algum lugar essa possibilidade. Como é viver sem medo. Foi bobagem minha achar que isso podia acontecer numa série estadunidense? Foi. Mas tava tudo ali. E ninguém conseguiu imaginar.
*
Tenho lido muito sobre tecnologias emergentes, internet e meio digital. Em algum lugar, li alguém falando da importância de aprendermos a pensar essas tecnologias para uma nova sociedade, que seria anticapitalista e decolonial. É mentira. Li muitos alguéns falando isso. Ouvi também. Penso nisso também. Mas ninguém diz: é assim que seria:
*
A Livia me veio com uma teoria de que Hope World, do J-Hope, é o estado pós-revolucionário. Ela não chamou de utopia, o que eu gostei. Porque a utopia é o horizonte. O estado pós-revolucionário é outra coisa. Existe trabalho a ser feito, existe conflito, existe debate e crítica. Mas já garantimos nossos direitos, a nossa sobrevivência.
Nessa análise, o J-Hope traz a esperança porque ele traz a capacidade de ver para além do sistema capitalista, nos faz sonharmos acordades junto com ele. O Yoongi como Agust D é a crise com o capitalismo, o Namjoon como RM é a revolução, o J-Hope é o que vem depois. A rapline é forte como é porque ela representa os três estágios que precisamos viver. Nós precisamos viver.
*
Parei de me sentir conectada à maioria das pessoas. Nenhuma mensagem, áudio ou ligação de vídeo faz com que me sinta próxima de alguém. O que chega mais perto é o telefonema e mesmo isso tem perdido a força.
Analiso cada minúcia do problema. A falta de toque, de contato visual, não compartilhar o mesmo ambiente, depender de uma empresa, depender da conexão, estou surtando com questões da técnica. Mudei minha pesquisa de mestrado por causa disso. A técnica é constitutiva, eu repito junto com meus colegas do grupo de estudos e 1% do meu cérebro se pergunta se não tô papagaiando o que eles dizem enquanto 99% olha pras telas e e entra em pane ao ver como as técnicas que estruturam as redes são responsáveis por muito dos nossos problemas, mas ninguém dá tanta bola assim. É ruim, mas é o que tem. Que vontade de gritar, já me descabelei, já perdi muitos fios de cabelo, eu tô tão cansada, eu queria dizer pra todo mundo, mas vem a consciência da técnica vem aquela vozinha perguntando por que raios eu quero fazer isso. Não faço. Paro.
*
O problema é sempre o capitalismo. Quer dizer, nem sempre, mas 99% das vezes podemos nos resumir a isso. O problema é sempre o capitalismo.
O nosso sistema neoliberal conseguiu reduzir a internet às redes sociais e sites de compras on-line - e, cada vez mais, os dois juntos. Finalmente conseguiram nos transformar nem sei mais se em marcas, mas produtos. E precisamos manter a qualidade, trabalhar pra isso, criar o conteúdo.
Já não faço ideia do que é conteúdo, porque ele é tudo. Toda palavra, toda imagem, tudo é um produto chamado conteúdo que não serve a ninguém além das empresas, e só serve às empresas (e, bom, aos governos) porque o conteúdo é a fachada pro produto real, o ouro: os dados. E, pra ser honesta, eu já nem sei mais o que dá pra fazer com os dados, porque toda vez que leio sobre isso percebo que é tudo. Dá pra fazer tudo, é uma vigilância constante, é um poder que não sei explicar com todas as palavras mas me assusta. E todo artigo que leio sobre o assunto termino desesperada achando que não tem salvação, mesmo que tenha. Eu sei que tem. Mas eu não sei qual é e ninguém me fala.
Mas se falarem e colocarem em rede, isso também não é dar a munição ao inimigo? Não é mostrar as cartas que estão na nossa mão?
*
Revejo as cartas de tarô e elas me dizem: não tente se satisfazer, não busque a satisfação. Esse é um ano de resiliência. Mas sou teimosa e me revolto. Todos os dias me revolto, então respiro e sigo em frente, não tem nada que eu possa fazer e eu tô cansada. Preciso de uma pausa, sair da cidade. Imagino como seria ir pra praia, deitar na areia, sentir o mar, ouvir o mantra da natureza. Imagino como seria você aparecendo aqui em casa, como seria te abraçar, sentir seu toque, ver seu sorriso e a gente ir juntos aproveitar o horizonte. A gente ia conversar até garganta secar e rir tanto que ia doer a barriga. A gente tá perto, tão perto, eu posso sentir. E você?
Beijoks,
Clara
um desenho meu desse ano
crie a utopia