A vida acontece demais ou de menos
🚀 Olá, astronautas! 🚀
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Eu queria ser feliz de novo. Eu queria saber rir sem desespero, viver sem ódio, ser lembrada de que também sou mundo. Sinto falta do meu corpo. Dançar com outras pessoas, provar o sabor dos temperos que não são meus, sentir o sol e o vento na minha pele, me ensopar na chuva que se monta no meio da tarde, bem na hora que precisava estar em outro lugar que não ali.
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Não aguento mais viver com ódio. Já quis quebrar tudo, destruir o mundo, a mim mesma, me lançar na minha própria pulsão de morte. Quis fazer muita merda, não fiz. Me mantive cativa entre as paredes da minha casa. Poderiam ser paredes piores, tão piores. Mas vejo cada dia mais as minhas se descascarem, pouco a pouco, cantinho por cantinho. Vejo todas as manchas do tempo.
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Eu queria lembrar. Queria ter o que lembrar porque lembrar gera prazer e felicidade e volta a me encher de amor. Mas eu só esqueço. Dos sonhos, das histórias, das conversas, dos meus próprios pensamentos.
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Não estou vazia. Estou cheia. Por isso esqueço. Memórias não parecem caber mais em mim.
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Às vezes, resgato algumas que estavam em um canto afastado. As noites com a minha mãe quando meu pai não estava, alguma bobagem da época da escola, uma festa da faculdade, uma viagem pro mar, o apartamento da minha bisavó.
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Ando muito quieta, mas às vezes me pego cantando: um inferno fora daqui.
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As coisas sempre acontecem demais ou de menos, nunca é uma medida adequada.
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Uns anos atrás, disse a uma amiga: a vida é louca, mas a gente é mais louca que a vida. Esses dias, a vida anda mais louca que eu. Faz parte.
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Faz parte. Eu sei que faz parte, mas isso não é suficiente.
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Continuo cansada. E cansada de estar cansada. E cansada de estar cansada de estar cansada. Às vezes, nossa loucura não é suficiente. Às vezes, cansa ter que ser louca porque cansa acompanhar o ritmo caótico do universo.
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Ainda assim, toda noite, antes de fechar a janela, olho pro céu com ou sem estrelas e nos repito: podemos ficar bem. Eu cuido de você, você cuida de mim.
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Não sei ao certo o que isso significa, não sei se posso dizer uma coisa dessas. Não estou apta a cuidar do universo, eu sei. Ele também não taà pra cuidar de mim. Mas a gente se repete isso que já não sei se é promessa ou mantra ou mentira. Precisamos criar nossos sentidos.
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Entrei em uma crise estética no começo do ano. Logo agora que tava tão contente com as coisas que estava fazendo, pensando em vender uns prints pra contribuir com a coloração da parede de outras pessoas. Quem sabe isso ainda rola? No momento, fui engolida por outros acontecimentos. Mas tiro meu tempo pra desenhar.
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A crise é uma crise idiota falando assim: tenho precisado de coisas fofas. Arco-Ãris, florzinhas, bichinhos fofos, corações, muitos, muitos sorrisos. A vida já tá violenta demais. Me dê milhões de Snoopys com os braços abertos pra me abraçar. Tenho querido muito mais abraços do que posso ter no momento.
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Eu queria um romance pra ocupar a minha cabeça. Nem que fosse ficcional. Mas eu não consigo ler nada que não seja teóricos anticapitalistas.
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Sempre gostei de coisas fofas. Isso nunca foi um problema. Sempre gostei de ver ilustrações bonitinhas dessas que dão quentinho no coração. E, por muito tempo, quis saber fazê-las, mas fui percebendo essa não era a minha onda.
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Não é o que eu gosto de produzir, de criar. Minha criação vai por outro caminho, com explosões de cores e formas, não sei deixar as palavras de fora, gosto do impacto, da vibração.
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Mas agora veio essa suavidade. As cores que adjetivamos de bebês e a figuração pra qual torcia um pouco o nariz. Foi difÃcil aceitar, mas sinto que, depois de dois meses, tenho encontrado um caminho possÃvel. Algo que permita ainda as minhas esquisitices. Um snoopy de duas cabeças, outro de cinco olhos, um sapo sendo abduzido, pois acredite.
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Me parece uma negociação entre a fofura e a esquisitice. O familiar e o estranho. Mas não é uma negociação tensa, todos estão dispostos a ceder. Todas as partes de mim precisam de acalanto.
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A pós está começando. Uma das muitas coisas que acontecem demais. Antes, acontecia de menos.
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Meu projeto vem de um incômodo que data lá de 2013, um ano depois do mundo ter acabado. Quando comecei a me deparar com as fotografias da Petra Collins e de Lora Mathis. Aquele rosa, aquele brilho, aquela suavidade toda.
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Na época, diziam que era diferente, tinha um quê de reclamar a feminilidade tradicional e lhe dar uma força revolucionária ao mesmo tempo que, no meio de toda beleza, havia certas rebeldias. Aquilo nunca assentou direito em mim. E ficou cozinhando a fogo baixo por anos até que veio a ideia do mestrado. Não é bem sobre as imagens produzidas em si, mas sim sobre as redes de fama que criam a força dessas imagens. No fim das contas, foi a forma que encontrei de falar mal da internet e de como discursamos nela.
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Criar beleza em um mundo de horrores é um pouco o discurso das fotógrafas que pesquiso. É também o argumento das escolas literárias que mais me irritavam na faculdade. É o que tenho feito com as minhas ilustrações.
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Tem uma ironia nisso que acho meio engraçada. A outra metade gera a crise. Mas não tenho tido muito tempo pra ter uma crise profunda. Também não tenho tido muita cabeça pra nada disso. Por isso a negociação tão fácil. Eu preciso ceder.
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Já não sei mais o que contar e o que não contar às pessoas. Me perdi no que quero dizer e pra quem quero dizer. As palavras me escapam. São escassas como a vida tem parecido escassa.
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Não sei se o que escrevo aqui é desabafo ou conversa. Talvez seja um pedido de companhia.
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Eu queria estar junto de novo. Eu queria os abraços e os risos e o ambiente compartilhado. Ver o corpo inteiro das pessoas, os olhares, poder ter silêncios sem o medo da partida. Queria poder esquecer a minha imagem, esquecer que estou performando e me sentir eu. Só eu. Em conjunto.
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Se o sentido só se faz em relação, eu também assim me faço. E entre imagens pixeladas e a vista da janela, continuo quieta pensando: a vida acontece demais ou de menos.
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Fiquemos bem.
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Bjoks,
Clara
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